A Sessão Mais Longa – Parte I

[float=right][/float]

Tal como já tinha comentado de passagem, no fim-de-semana prolongado de 10 a 13 de Junho (13 é o feriado de Lisboa, para quem não é de cá) participei numa verdadeira orgia de Roleplay. Os cabecilhas do evento foram os nossos JMendes e Ralek (Rogério), e a coisa consistiu basicamente nisto: cinco pessoas (nós os três mais a Ana e o Nuno, um amigo do resto do gang) trancadas numa casa com comida e bebida, durante 4 dias. Era um autêntico Big Brother, só que em vez de estarmos trancados com as câmaras, ficámos trancados com um RPG (Heroquest), dados, papel, lápis e borrachas! Só se parava para comer, dormir e satisfazer outras necessidades físicas; e só se ia à rua para beber café ou comprar mantimentos…

De modo que foi assim que eu passei quatro dias nas Caldas da Rainha, e da cidade só fiquei a conhecer uma estrada, algumas ruas e várias rotundas. Cheguei na quinta-feira à tarde, por volta das 19h, e saí na segunda de manhã, logo após o final oficial do evento, já passavam das 6 da manhã! A coisa mais próxima disto que tinha feito foi um gigantesca sessão de jogo de D&D em minha casa há mais de dez anos, mestrada pelo grande JP! Mas, mesmo essa sessão não terá durado mais que umas 14h, portanto é definitivamente um novo recorde pessoal.

Tenho a dizer que Heroquest é um sistema ainda mais lindo na prática do que já parece no livro. A versatilidade e flexibilidade de todo o sistema não tem comparação com nenhum outro RPG minimamente «tradicional». Em que outro jogo é que se pode ter um skill chamado “Sit Quietly” e poder de facto dar-lhe uso em combate e interacções sociais? Em que outro jogo é que eu poderia dar largas à imaginação e criar em dois segundos um objecto mágico chamado “Armband of Great Escapes”, ou dar a um cavalo a habilidade “Make Friends”? Um jogo onde facetas de personalidade e relacionamentos (bons ou maus) com pessoas, grupos, organizações nos podem ajudar directamente nos lançamentos?

O mais incrível é que as regras são bastante simples. Pondo de lado a magia, o cerne de tudo aquilo cabe em poucas páginas. Não se perde tempo ou esforço a limitar a imaginação dos participantes criando listas rígidas de skills e tentando definir claramente a sua aplicação em jogo. Deixa-se, em vez disso, rédea livre aos jogadores para inventarem o que lhe apetecer, fornecendo apenas guidelines para reger a sua aplicação em função da adequação da skill à situação. Tendo em conta que as situações que os personagens enfrentam nas aventuras atravessam um leque infinito de possibilidades, ou não saíssem elas das cabecinhas pensadoras de seres humanos, também me parece que não faz sentido que as ferramentas mecânicas – com expressão directa em termos de regras – que os jogadores usam, em conjunto com a sua própria cabecinha pensadora, para as ultrapassar se encontrem limitadas e estandardizadas.

Há algo de incrivelmente apelativo em ser colocado face-a-face com um desafio para ultrapassar e ter de usar a imaginação e a astúcia para encontrar na folha de personagem todas as skills, habilidades, relacionamentos e magias que se possam aplicar, tentando espremer dali mais uns pontinhos que podem fazer a diferença. É claro que isto também pode ser um processo longo e cansativo para o Mestre, que tem de aprovar o que os jogadores querem usar, mas pelo menos no meu caso era bastante intuitivo. Normalmente escolhia as minhas opções enquanto o diabo esfregava um olho e depois, como estava na mesma onda que o GM, elas eram quase sempre todas aprovadas. Mas pronto, também era habitual haver quem demorasse demasiado tempo a fazer as suas escolhas, e que precissava de muito input do Mestre para chegar ao resultado final.

Os chamados “extended contests” são uma maravilha. Há anos que não me sentia tão entusiasmado e tão cheio de suores frios numa disputa (ia chamar-lhe “combate”, mas não se enganem… aqui os contests podem ser tudo e mais alguma coisa, desde uma disputa social a uma mental, por exemplo). A diferença crucial aqui é que o estrago que um personagem faz ao adversário está dependente daquilo que ele arrisca; podemos tentar ganhar a disputa com um golpe desesperado, mas isso significa que também nos arriscamos a perder toda a disputa num só golpe. É incrivelmente diferente do normal “decide como atacar, rola para acertar, rola para fazer dano e repete indefinidamente até acabar”, onde o único input do jogador ocorre sobre a situação táctica, causando isso (ou não) alguns pequenos ajustes ao nível do roll para acertar e, raramente, ao roll do dano. Aqui houve várias situações onde se arriscou o tudo por tudo para pôr um fim ao adversário antes que fosse ele a pôr-nos um fim. Dá muito mais adrenalina do que os arrastados combates taco-a-taco em que os jogadores e o mestre vão lentamente reduzindo os Hit Points do adversário numa eterna espiral descendente. Em Heroquest o combate só é arrastado se os participantes assim o quiserem e não preferirem arriscar. Um golpe bem dado e um pouco de sorte (ou bom uso dos escassos Hero Points) pode retirar uma quantidade brutal de Advantage Points ao adversário e transferi-los directamente para nós (e vice-versa, infelizmente, eheh) alterando-se logo ali todo o curso da batalha.

A magia já aqui foi discutida várias vezes. In-game, há três escolas diferentes de magia e uma quarta que eu distingo das outras porque é bem mais simples. Há quem ache isso muito complexo, afirmando que são três/quatro sistemas diferentes de regras, mas eu sempre discordei. As nuances das quatro escolas de magia são realmente bastante complexas, mas o sistema que as rege nem por isso. Os “target numbers” são os mesmos, os efeitos mecânicos das “magias” são os mesmos, habilidades e relacionamentos importantes para certos rolls têm equivalentes entre escolas de magia, etc.

O que realmente distingue as escolas de magia é em que situações e de que maneira se podem usar os feitiços, e como se processa a progressão na carreira (embora haja sempre os mesmos três níveis de progressão). A magia chega em vários formatos (cada escola tem os seus) – Talentos, Charmes, Fetiches, Feats, Afinidades, Benções, Maldições, Feitiços, etc. – com aplicações e limitações ligeiramente diferentes (com as necessárias adições e excepções à regra básica da magia, claro), mas o efeito final mede-se sempre da mesma maneira: das duas uma, ou a magia se torna numa skill especial para ultrapassar um target number (que é sempre fixo, não importa a escola de magia) ou então acrescenta um bónus (calculado de maneira igual para todas as escolas, e de forma igualzinha a uma skill “secundária”) a uma skill não-mágica.

Acho que isto acrescenta variedade sem complicar demasiado. Consegue ser complexo para um principiante no jogo, e nós somos um exemplo tão bom como qualquer outro: parámos o jogo várias vezes para um jogador consultar as regras sobre como podia ganhar novos feitiços, ou “progredir na carreira” ou usar a magia de uma escola/tradição diferente da sua. Mesmo assim, acho que não se compara a outros jogos em que praticamente cada feitiço é um caso único, com particularidades especiais que, quando ocorrem as inevitáveis misturas no campo de batalha, dão origem a situações que não vêm previstas nas regras. Além disso, a variedade da origem da magia é muito bem-vinda no mundo de Glorantha, setting do jogo, onde literalmente há de tudo e acontece de tudo, e onde toda a gente – até o camponês mais comum – usa alguma forma de magia.