Animais Como Nós, o meu RPGénesis para 2011

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"Pedras no meu caminho?
Guardo todas.
Um dia vou construir um castelo."

- Fernando Pessoa

Animais como nós
São como nós, homens e mulheres deste século. Falam, pensam, amam, vivem cada dia sem saber como será o próximo. Juntos fazemos parte do mesmo mundo. Podem não andar como nós ou construir coisas como nós, mas teem também os seus sonhos e as suas ansiedades, teem a sua linguagem e conversam entre eles, questionam-se. Nascem, crescem e morrem.

Animais como nós
São como nós, apesar de sermos gatos e eles ratos, porcos e eles corvos, burros e eles mochos, cães e eles cobras. Todos seguimos a nossa natureza. Podemos não falar a mesma língua, podemos estar divididos entre presas e predadores, mas todos tentamos sobreviver e ver o sol nascer para mais um dia. Todos temos medo de alguma coisa.

Animais como nós
São como nós, atados uns aos outros, sentindo com o seu coração frouxo ou apertado. Nós que são parte da mesma corda, mas que são todos diferentes. Cada nó é uma só criatura, mas todos partilham a mesma terra e o mesmo tempo. Cada nó só sente o que está à sua volta, mas todos procuram dar sentido ao que sentem. Quando o vento sopra mais forte e a corda se rompe, são nós que se desfazem e novos nós que se podem criar.


Apresentação

Animais Como Nós é um jogo para três pessoas com uma duração aproximada de trinta minutos por volta. Em cada volta, há três vozes que rodam entre os três jogadores: o Animal, o Coração e o Vento. O Animal quer viver, o Coração quer sentido e o Vento quer mudança. Uma volta termina quando todos os jogadores tiverem tido a sua vez como Animal, Coração e Vento. Ao fim de cada volta, os jogadores podem dar o jogo por terminado ou podem dar outra volta. Se terminarem o jogo, podem continuar a jogar mais tarde a partir das voltas que já deram ou podem simplesmente começar um novo jogo.

O objetivo do jogo é criar histórias sobre três Animais Como Nós a partir do conflito entre as várias vozes. Quando um jogador é o Animal, o seu propósito é entrar dentro dessa personagem dizendo o que ela diz e o que ela faz. Quando é o Coração, o jogador fala pelas várias personagens que convivem com o Animal de modo a descobrir um sentido para a história da sua vida, seja ele qual for. Quando é o Vento, o jogador é a voz que descreve o mundo onde o Animal se move e quer que a história avance de modo a que algo de novo aconteça.

Para jogar, é primeiro necessário ler este texto e o leitor que seguir estas indicações para explicar o jogo ás duas pessoas que vão jogar com ele é chamado de Guia. Esta não é uma voz como as outras, mas sim um papel que é desempenhado fora do jogo por uma pessoa que ajuda as outras a aprender como é que Animais Como Nós funciona. O Guia faz isto respondendo ás dúvidas dos outros jogadores e colocando questões que ajudem a explicitar o que cada jogador quer dizer. Se o tempo para jogar for limitado, cabe também ao Guia controlar a duração de cada volta lembrando aos jogadores que teem cerca de dez minutos à vez para determinar como a história de cada Animal se desenrola. Finalmente, o Guia também deve estar atento se houverem certos assuntos ou temas sobre os quais um outro jogador se sinta desconfortável ou que possam não ser adequados para sua idade. Como a história de cada Animal é criada em conjunto e evolui de forma inesperada, o Guia deve identificar antes do jogo começar se existem ou não certos conteúdos de ficção com os quais os jogadores não se sintam à vontade. Se o tempo para jogar for limitado, os jogadores deverão evitar estes conteúdos na criação da sua história ou poderão só referir-los indiretamente. Se o tempo para jogar puder estender-se para lá da meia-hora por volta, o Guia poderá conversar com os outros jogadores para juntos conseguirem explorar todos os assuntos ou temas que, à partida, não conseguiriam ver postos em causa numa história que estão a criar, mas que, confiando uns nos outros, poderão mesmo abordar ao nível da ficção que estão a jogar. Nestes casos, será recomendável fazer um intervalo entre cada volta para descontrair e debater estas questões.

O material necessário para jogar é:

  • uma dúzia de pedrinhas, todas diferentes, todas iguais;
  • pelo menos três cópias da ficha de azulejos;
  • três lápis afiados, uma borracha;
  • um espaço onde se possa conversar confortavelmente;
  • um relógio para controlar o tempo.

Mundo

No início do século XV em Portugal, a vida nos matos, trilhos, vilas e quintas desta terra cresce e floresce à custa de muito sacrifício. Há sempre aqueles que sofrem e aqueles que prosperam, mas ninguém sabe ao certo de que lado estará amanhã. Dia e noite, cada animal à sua maneira enfrenta os desafios que lhe cabem: encontrar comida, acasalar, fazer um ninho, resguardar-se do frio, marcar território, cuidar dos filhos, sobreviver a predadores, lamber as feridas, evitar a crueldade dos homens e eventualmente aprender a viver debaixo deles. Pequenos e grandes, do mato ou das quintas, do céu ou da terra, todos os animais teem a sua própria perspetiva sobre o mundo e, se alguns só procuram a companhia daqueles que são da sua raça, outros conseguem entender-se com vários animais apesar de falarem línguas diferentes. Talvez até com os homens e com as pedras seja possível falar.

Este mundo ficcional está algures entre o nosso mundo real de há seiscentos anos atrás e o mundo das nossas fábulas de criança. Aqui não há animais antropomorfizados disfarçados de avozinha ou calçados com botas, não há bruxas malvadas ou fadas mentirosas, mas há tempestades e incêndios. Aqui os gatos andam em quatro patas e as ratazanas cheiram mal, os animais matam-se uns aos outros e ninguém vive feliz para sempre. A beleza deste mundo é brutal e quase sempre invisível. Um animal convive todos os dias com a vida e com a morte e é fácil ele se questionar se o seu único propósito neste mundo é servir de comida para outros animais ou, até pior, para ser triturado pela roda dentada da cega crueldade humana.

Alguns animais são solitários, outros isolam-se com a sua família, alguns dependem dos homens, outros organizam-se em grupos, alguns querem que o seu nome perdure depois da sua morte, outros só querem morrer em paz. Todos adaptam-se ás suas circunstâncias mas, por vezes, procuram algo de permanente, algo que vá para além da vã espiral dos dias e das noites. Cada animal tem a sua própria visão do mundo formada não só pelas características da sua espécie e pelas experiências que sofreu, mas também pela sua inteligência e personalidade. Talvez, para um animal que viva perto da terra, o céu à noite não pareça mais do que um pálido reflexo da textura e do cheiro da vegetação e, para um animal que viva quase sempre no céu, a mesma terra pareça só conseguir existir graças ao sol e à lua. Tal como os homens, os animais sentem não só com os cinco sentidos, mas também com o coração, não seguem só os seus instintos. No entanto, ao contrário dos homens, os animais não conhecem ideologias, filosofias ou religiões, sentem empiricamente como os homens sentiram o mundo pela primeira vez há milhares de anos atrás, encontrando as mesmas angústias e procurando as mesmas respostas. Para que é que estamos aqui? Que vida há para além da morte? Que sentimento é este de compaixão que sentimos uns pelos outros? Alguém criou este mundo? Poderemos matar ou morrer em nome de um bem maior ou por mera vingança? São as eternas perguntas em busca da resposta absoluta que nunca satisfaz a todos mas, na história de cada animal, poderemos talvez encontrar uma entre muitas possíveis respostas.

Neste mundo, os jogadores dão voz a animais como ratos, gatos, corvos, porcos, galos, cães, mulas, cobras, mochos, esquilos, lobos, patos, lagartos, javalis, veados, raposas, texugos, etc. Animais do mato ou da quinta, criaturas que podem matar e serem mortas por outras criaturas. Neste jogo, a voz do Animal nunca encarna seres humanos, insetos ou animais aquáticos, cada história não terá como protagonista um caçador, uma borboleta ou uma truta, apesar de estes animais poderem ser muito importantes como personagens secundárias. Se os jogadores quiserem, podem encarnar animais da praia e do mar como uma gaivota, um lobo-marinho ou um caranguejo, mas, nesse caso, todos os três Animais necessitam de pertencer a este ambiente. A hipótese de as suas história se cruzarem e de eles interagirem uns com os outros tem de existir sempre, bem como a possibilidade de matarem ou serem mortos, nem que seja pelas mãos dos homens. Por outro lado, a voz do Coração pode encarnar mesmo qualquer animal que lhe pareça apropriado, sejam aranhas, formigas, agricultores ou borboletas, e até pode excecionalmente introduzir personagens como uma árvore ou uma rocha antropomorfizada, desde que possa fazer sentido o Animal poder ouvir e falar com estas criaturas. Qualquer animal pode ser introduzido também pela voz do Vento desde que este seja um claro inimigo do Animal ou simplesmente fizer parte da paisagem, ou seja, se não houver nenhum diálogo possível.

Todos os animais teem um nome que lhes é dado pelos seus pais ou pelos seus donos, sendo que também podem dar a si próprios um novo nome. Tal acontece porque é habitual os nomes terem algum significado mais ou menos inerente como por exemplo Jigajoga, Caganeta, Brancaflor, Calcaterra, Fraca-Chicha, Batalha, Rifão, Pedranceiro ou Verruco. Assim, um animal pode querer marcar algum momento determinante da sua vida dando a si próprio um nome apropriado. Durante este jogo, os nomes indicam claramente que uma personagem é alguém com quem o Animal pode conversar, ou seja, o Vento não dá nomes a ninguém. Um nome contém sempre nele um potencial de permanência que é contrária ao propósito do Vento.

Neste mundo, há homens que constroem igrejas e animais que sonham todas as noites, mas não há qualquer prova final da existência do divino. Tal como no mundo real, há muitos extremos e meios termos, há tantas ideias diferentes como flores num campo. Há quem não acredite em nada que não possa sentir com os seus cinco sentidos e há quem só acredite naquilo que possa sentir com o coração. Há quem acredite em profecias e quem se aproveite dos piores medos dos outros animais para os comandar. Há quem procure se transformar num ser humano e quem julgue saber tudo o que os homens nunca saberão.

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Fixed! Trés cool!

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Azulejos

Para o jogar começar, as pedrinhas são postas todas no meio da mesa e cada jogador fica com uma ficha de azulejos à sua frente. A voz do Animal será primeiro do jogador mais jovem, seguindo-se a ele o menos jovem e, por fim, o mais velho, pelo que os jogadores devem sentar-se nesta ordem seguindo os ponteiros do relógio. O jogador à esquerda do Animal será o seu Coração e o jogador à sua direita será o seu Vento. Na ficha, os jogadores podem escrever o seu nome em baixo, e verem representados nove azulejos dispostos em grelha, nove quadrados com os símbolos que representam as três vozes ordenados de acordo com a sequência de uma volta.


No azulejo do meio, vem representada a voz do Animal do jogador que tem a ficha à sua frente. À esquerda deste azulejo, está a voz do Coração e à direita a voz do Vento. Nos três azulejos de baixo, o jogador tem a voz do Vento com o Animal à sua esquerda e o Coração à sua direita. Nos três azulejos acima, o jogador pode ver que quando a voz do Animal está à sua direita, ele tem a voz do Coração e à sua esquerda está a voz do Vento. As três linhas de azulejos representam as três vezes de uma volta ordenadas de modo descendente, as três vezes que cada voz tem com cada jogador. Quando o jogo começa, todos podem conferir a sua voz na sua ficha: o primeiro jogador olha para a sua linha de azulejos do meio enquanto o jogador à sua esquerda olha para a sua linha de cima e o jogador à sua direita olha para a sua linha de baixo. A partir daqui, em cada volta, os jogadores percorrem todas as suas três linhas de azulejos com a coluna do meio a indicar sempre qual é a sua voz.

Cada vez tem uma duração aproximada de dez minutos e nela os jogadores criam uma cena da história do Animal protagonista, um capítulo em que ele tem de cumprir com os propósitos das três vozes. Em geral, o Vento descreve onde o Animal está, o Coração indica quem está com ele e o Animal fala em nome do seu protagonista dizendo o que ele faz. À medida que a cena evolui, o Vento tenta mudar alguma coisa apresentando um possível conflito com que o Animal poderá ter que lidar, o Coração tenta que o Animal responda pelas suas ações e pelas suas ideias interagindo com ele através de outras criaturas e o Animal segue os seus instintos de sobrevivência procurando, comer, acasalar, dormir em segurança e chegar vivo ao próximo nascer do sol. Os jogadores devem manter-se conscientes do tempo a passar para que uma cena não se perca por entre muitos possíveis caminhos sem acrescentar nada à história. É possível jogar muito para lá dos dez minutos se os jogadores estiverem perante um capítulo dramático da vida do Animal ou se estiverem mesmo no meio de uma grande revelação para esta personagem. A vez de um Animal também poderá se alongar um pouco mais se algum assunto ou tema mais difícil de tratar estiver em causa entre as personagens do Coração e o Animal.

A primeira volta do jogo é apenas uma de aquecimento em que os jogadores ainda estão a aprender como devem proceder e começam a conhecer os seus Animais. Nesta volta, tem de se ficar a saber como cada Animal recebe o seu primeiro nome. Dos seus pais, do seu dono, de si próprio? Qual é este nome? Nesta primeira cena, nesta espécie de capítulo introdutório, a vida do Animal não está imediatamente em risco, é um momento da sua infância em que o Vento tem a oportunidade de montar o cenário onde a sua vida começa, o Coração introduz as personagens que marcam o início da sua história e o Animal pode descrever-se a si próprio e interagir com o mundo à sua volta mostrando a sua identidade. Deste modo, o Coração dá um nome ao Animal e orienta-o nos seus primeiros tempos de vida a partir dos seus familiares, companheiros ou donos. Assim que isto acontecer e todos os jogadores ficarem com uma ideia inicial sobre este Animal, a vez deve passar para outro jogador tomar a voz do seu Animal enquanto o primeiro jogador assume agora a voz do Vento e o outro a voz do Coração. Esta volta termina quando a vez passa novamente para a esquerda e o último jogador assume a voz do seu Animal, o primeiro é o Coração e outro é o Vento. Assim, da mesma maneira que os Animais dão os seus primeiros passos neste mundo, os jogadores também aprendem a sequência deste jogo.

Em cada vez, cada jogador pode escrever uma palavra em cada um dos azulejos da linha em que ele se encontra, ou seja, pode escrever até três palavras diferentes por vez, cada palavra escrita dentro do azulejo do Animal, do Coração ou do Vento. Estas palavras são escritas nos azulejos que corresponderem ás vozes do jogadores que as disserem. Cada jogador é que escolhe qual é a palavra que ele considera poder ser mais interessante ou relevante para o conjunto das três histórias destes três Animais. Em princípio, estas deverão ser palavras que, por serem conceitos abstratos, teem um significado em aberto que, ao contrário do que acontece com a maior parte dos homens, é ainda questionado, descoberto, experimentado ou explorado pelos animais. São palavras como medo, amor, tamanho, força, esperança, morte, viver, sonho, destino, obra, desejo, compaixão, idade, bravura, beleza, desespero, salvação, ambição, deus, solidão, sabedoria, etc. Certas palavras como lágrimas ou coração dizem respeito a conceitos concretos, mas também podem ter um significado bastante mais lato. Naturalmente que, na primeira volta, o nome do próprio Animal merece ser escrito quando dito pelo Coração, mas não é obrigatório. Os jogadores não devem interromper a conversa para informar os outros daquilo que estão a escrever, nem se devem preocupar em espreitar aquilo que os outros já escreveram. Podem sim estar atentos para não repetirem uma palavra que já tenham escrito na sua ficha. Devem também ser espontâneos e não se estenderem no tempo para se lembrarem desta ou daquela palavra. É ao fim de cada volta que os jogadores devem partilhar entre si aquilo que escreveram.

Quando um jogador assumir uma voz e incorporar nela uma palavra que tenha ficado escrita num azulejo de outro jogador numa vez anterior, o jogador que disse essa palavra recebe uma pedrinha e o outro jogador marca um X em frente à palavra que escreveu. Se dois jogadores tiverem escrito a palavra, os dois marcam um X em frente dela e aquele jogador recebe duas pedrinhas. Uma palavra que já tenha um X em frente dela não dá mais nenhuma pedrinha, mas também não pode ser apagada. As várias palavras marcadas ficam em cada ficha como memória do jogo. Após muitas voltas, se já for quase impossível escrever nos azulejos porque estes estão cheios de palavras, será a altura de fazer uma última volta para concluir esta longa trama de histórias.

Se um Animal morrer ou de alguma outra forma for removido permanentemente da história, o seu jogador continua a jogar assumindo a voz de um novo Animal tal como na volta de aquecimento. O jogador continua a usar a mesma ficha e tem que assumir a voz de um Animal relacionado direta ou indiretamente com a história do anterior. Esta pode ser uma personagem que anteriormente seria assumida pelo Coração ou mesmo pelo Vento. Durante o jogo, a continuidade na história não necessita de ser linear, ou seja, pode saltar para trás no tempo para mostrar como era este novo Animal na sua infância antes da sua vida se cruzar com a do Animal que acaba de sair da história.

Pedras

O monte de doze pedrinhas postas no meio da mesa chama-se Mosteiro e dele, no início do jogo, cada jogador retira um Espólio de três pedrinhas que coloca ao lado da sua ficha. Durante o jogo, cada jogador poderá dar ou receber pedrinhas do Mosteiro para o seu Espólio. Estas pedrinhas representam a força que cada jogador tem para suportar esta abóbada de histórias que é construída pelas vozes dos três jogadores. Se o jogo parar para ser recomeçado mais tarde, os jogadores podem manter o registo do número de pedrinhas que o seu Espólio tem colocando um X por cada pedrinha à frente do seu próprio nome.

Seguindo o seu propósito, cada voz tem as suas palavras e as suas propostas. As suas palavras são suas e de mais ninguém, são elas que descrevem os sons, as cores e os cheiros do mundo no caso do Vento, a generalidade das personagens no caso do Coração e a presença ou atitude do Animal. As suas propostas são avanços na história que partem do âmbito de cada voz mas que, ao contrário das palavras, podem não receber concordância da parte das outras vozes. Quando o Vento fala das folhas de Outono que rodopiam numa dança de dourados e bronzes, isto são palavras, mas quando um incêndio cresce como um gigante que está a devorar a mata, isto é uma proposta. Quando o Coração diz o que uma raposa diz quando está a conversar com o Animal, isto são palavras, mas quando a mesma raposa engana este Animal para a ajudar a massacrar um galinheiro, isto é uma proposta. Quando o Animal diz que passa o seu fim-de-tarde a reunir material para o seu ninho, isto são palavras, mas quando o animal diz que tem pronto um ninho quentinho escondido num sítio que nenhum predador o encontra, isto é uma proposta. Enquanto todas as palavras são livres, cada proposta pode implicar dar uma pedrinha para o Mosteiro.
Quando uma voz ouve uma proposta vinda de outra voz, o seu jogador pode escolher aceitar, pedir ou recusar. Para aceitar, não necessita de fazer nada. Para pedir, pousa na mesa a sua mão vazia voltada para cima junto ao Mosteiro, sinalizando que a sua voz só aceita a proposta se o jogador proponente der uma pedrinha do seu Espólio para o Mosteiro. Para recusar, põe na mesa a sua mão fechada virada para cima junto ao Mosteiro, sinalizando que a sua voz não pode aceitar esta proposta. Quando as duas vozes que ouvem a proposta de uma outra voz a aceitam, aquilo que foi proposto entra na história. Quando uma delas pede uma pedrinha, a proposta entra desde que o seu jogador entregue uma pedrinha do seu Espólio, mesmo que a outra voz também peça, aceite ou recuse. Quando uma delas se recusa, se a outra voz também recusar, a proposta não entra, mas se a outra voz aceitar ou pedir, a proposta entra desde que uma pedrinha seja dada.

Todas estas reações ás várias propostas devem ser gesticuladas sem interromper a voz que está a falar. No entanto, esta pode alterar a sua proposta ou mesmo propor algo diferente para conseguir um maior consenso, desde que estas adaptações não se arrastem no tempo só para não pagar uma pedrinha. De qualquer modo, as propostas devem ser declaradas sempre de forma positiva, sem fazer perguntas nem indicar condições, ou seja, são frases que exprimem desde logo o que é suposto acontecer na história e não o que a voz acha que pode ou deve acontecer se as outras vozes eventualmente não recusarem ou não pedirem uma pedrinha para o Mosteiro. Apesar das concessões que tenha que fazer, uma voz nunca desiste de assumir a sua devida presença em todas as histórias. Há mesmo momentos em que todos os jogadores vão considerar que uma proposta da parte do Vento, do Coração ou do Animal tem que existir, é só uma questão de determinar qual esta será. Durante a primeira volta do jogo, pelo menos três propostas devem ser decididas pelos jogadores e cada vez mais devem fazer parte do jogo à medida que os jogadores se forem habituando a este processo e forem recebendo pedrinhas pelas palavras escritas que as suas vozes incorporarem.

Ao longo do jogo, cada Espólio vai recebendo uma pedrinha por cada palavra incorporada pelo seu jogador e por cada volta no final da qual o seu jogador esteja entre aqueles com menos Espólio. Para valer uma pedrinha, cada palavra necessita de estar escrita pelo menos desde a vez anterior num azulejo de outro jogador, não estar já marcada com um X e tem de ser expressa dentro de um novo contexto apresentado como parte das palavras ou propostas feitas por uma voz. A entrega de cada pedrinha é feita por cada jogador que tenha escrito a palavra num dos seus azulejos. Isto é feito pegando numa das pedrinhas que esteja no Mosteiro, colocando-a no Espólio do jogador que a recebe e escrevendo na ficha um X à frente da palavra dita. Se no entanto o Mosteiro já estiver vazio, a pedrinha não é dada e, por isso, a palavra não é marcada com um X. Deste modo, se o Mosteiro tiver só uma pedrinha e um jogador disser uma palavra que esteja escrita nas fichas dos outros dois, o primeiro deles a reagir vai entregar uma pedrinha e marcar a sua palavra com um X enquanto o segundo já não vai ter uma pedrinha para entregar e não vai marcar a sua palavra. Todas estas pedrinhas são entregues sem interromper quem estiver a falar nem interferir com a entrada de uma proposta. No final de cada volta, o Espólio ou os Espólios que tiverem menos pedrinhas recebem uma pedrinha do Mosteiro. Se houverem dois Espólios com o menor número de pedrinhas e só houver uma pedrinha no Mosteiro, o jogador com o Espólio maior escolhe qual deles recebe essa pedrinha. Se o Mosteiro estiver vazio, todos os Espólios com pedrinhas teem que doar uma para o Mosteiro. Entre cada volta, os jogadores devem partilhar entre si as palavras que teem escritas nos seus azulejos, mostrando assim as ideias que gostariam de ver incorporadas nestas histórias que todos estão a criar.

Vozes

A voz do Animal é a voz mais importante deste jogo. As histórias nele criadas nunca seriam verosímeis se o instinto e a natureza dos animais não determinasse o seu comportamento. Qualquer Animal, acima de tudo, quer estar vivo amanhã, de preferência com a barriga cheia e satisfeito por ter acasalado. Por outro lado, se estiver a sofrer, só quer que a dor pare e, se o seu sofrimento não tiver fim, talvez só queira morrer, mas, acima de tudo, um animal é uma criatura simples. Quer beber se tiver sede, quer calor se tiver frio, quer fugir se tiver medo, quer seguir a sua natureza pois é ela que tem garantido a sobrevivência da sua espécie durante gerações. Cada animal tem também o seu modo de experimentar o mundo, a sua maneira de nele brincar, os seus gostos e os seus pequenos prazeres guiados pelos seus sentidos apurados e pelas suas capacidades naturais. Com o pragmatismo que num piscar de olhos o transporta através da lufa-lufa do seu dia-a-dia, um animal não costuma parar para pensar.

A voz do Coração é a voz mais importante deste jogo. Se, por um lado, os animais falam e linguagem é pensamento, por outro, os seus cinco sentidos não são suficientes para explicar os sentimentos que estas criaturas teem e que despertam noutras criaturas. Há um sentido maior por trás da sua vida e da sua morte que vale a pena descobrir e perseguir, mesmo que, para alguns, este sentido possa parecer ridículo, louco, inútil ou destinado ao fracasso. Trata-se de preencher um vazio de significado que todos os seres vivos parecem sentir mas não conseguir explicar. Qual é o sentido da sua vida? Todos os animais acabam por se questionar nas suas conversas e nos seus pensamentos acerca daquilo em que acreditam, do que sentem e da razão que está por trás das suas ações. Faça o que fizer, qualquer animal acaba por sentir a necessidade de justificar as suas escolhas nem que seja só perante si próprio. Até uma criatura que confie inteiramente nos seus instintos quer ser mais do que uma mera partícula de pó no grande ciclo da natureza.

A voz do Vento é a voz mais importante deste jogo. Mais cedo ou mais tarde, tudo tem que mudar, todas as verdadeiras convicções teem de ser postas à prova para serem mais do que meras palavras e todos os hábitos enraizados durante gerações necessitam de ser postos em causa para serem valorizados. O mundo gira constantemente sobre si próprio e em volta de um eixo de mudança, pois só se movendo é que consegue evoluir, só graças a um mar caótico de inúmeras variações em que certas possibilidades sobem à superfície enquanto outras se afundam é que o mundo se pode adaptar e continuar a existir livre e independente do passado. É por existir esta liberdade e novidade que as escolhas dos animais são verdadeiras e não meros pontos de passagem ou ecos do que já aconteceu. Todas as histórias deste jogo necessitam desta imprevisibilidade para agarrarem a atenção dos seus jogadores e se tornarem únicas.

Cada uma das três vozes tem o seu propósito e os três propósitos são essenciais para este jogo. O Animal quer vida, o Coração quer sentido e o Vento quer mudança. Sem o Animal, o jogo tornar-se-ia numa mera parábola filosófica sem protagonistas que dessem a cara pelas múltiplas ideias nele engendradas. Sem o Coração, o jogo teria de fingir que o porquê das coisas não é a questão mais importante escondida no meio de todas as outras. Sem o Vento, o jogo seria um momento parado no tempo, estático e fechado dentro dele próprio, preso ás suas expetativas sem admitir surpresas. Assim, as três vozes são três pilares nos quais assenta o teto em que os jogadores pintam as suas histórias.

Se estiveres a assumir a voz do Animal, o teu propósito é viver como o animal que és. Deves conhecer a espécie que estás a encarnar e imaginar como é o mundo visto pelos teus olhos, como são as formas, os tamanhos, as cores, os cheiros, os sons, as línguas dos outros animais e os comportamentos estranhos que eles teem. Imagina quais são os teus instintos e como é que eles guiam os teus movimentos. Pensa não só nas tua necessidades, mas também naquilo que gostas de fazer experimentando o mundo à tua volta e explorando as tuas capacidades naturais ou os teus sentidos apurados. Procura formas de tornar a tua vida ou a tua morte mais confortável e prazenteira. Lida com o teu Coração tendo em conta que sentimentos bonitos não põem comida na tua barriga. Lida com o teu Vento com a noção de que te livrares de sarilhos só te vai meter em ainda mais sarilhos.

Se estiveres a assumir a voz do Coração, o teu propósito é levar o Animal a procurar um sentido para a sua vida. Para isso, deves fazer o mesmo com as personagens que tu crias e controlas, usando-as para mostrares ao Animal diferentes pontos de vista sobre o mundo e o questionares sobre aquilo em que ele acredita, os seus sentimentos, ambições e ideias. A resposta a estas questões não deve ficar subentendida ou encerrada num suposto monólogo interior do Animal. O sentido da sua vida tem de ser descoberto e expresso pela interação com outros animais, discutindo, conversando, amando e odiando, vivendo e até matando. Lembra-te também que responder a estas questões acaba por conduzir o Animal a ainda mais questões, ou seja, o teu propósito é a busca de sentido e não simplesmente ficar satisfeito com a primeira resposta. Lida com o Animal sabendo que os desafios que ele diz ter de enfrentar todos os dias não são assim tão inultrapassáveis comparados com as questões que tu lhe apresentas. Lida com o Vento do Animal tendo em consideração que as suas tempestades podem ser úteis para o Animal tomar consciência daquilo que é mais importante para si, mas demasiadas ventanias podem também interferir com os momentos introspetivos que tu pretendes e um caos excessivo vai mesmo contra o teu propósito.

Se estiveres a assumir a voz do Vento, o teu propósito é fazer com que o Animal mude. Mantém-te atento ao status quo que se esteja a criar para o poderes mandar abaixo da forma mais eficaz e inesperada. Desafia não só a sobrevivência do animal, mas também o seu território, as suas relações com outras criaturas, os recursos de que ele necessita e as suas convicções. Faz ouvir a tua voz intervindo nas interações que o Animal tem se em algum momento o diálogo deixar de ser possível. Monta um mundo cheio de possibilidades que puxe o Animal a sair do seu ninho para contactar com coisas novas. Lembra-te que a vida dos animais é suposto ser brutal, mas evita também tornares-te repetitivo, ou seja, nem todas as tuas propostas teem de ser desvantajosas para o Animal. O mais importante não é constantemente empurrar-lo para baixo, mas sim dar ritmo à história introduzindo novas circunstâncias. Lida com o Animal afirmando que juntos vocês podem fazer dele um verdadeiro herói. Lida com o Coração do Animal tendo em conta que o mundo não tem que fazer sentido, ás vezes as coisas são como são e não tem de haver uma razão por trás de tudo o que o Animal encontra.

Como sempre estás sempre em boa forma no que diz respeito a publicar ideias de RPG. Bom trabalho!

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