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"Pedras no meu caminho?
Guardo todas.
Um dia vou construir um castelo."
- Fernando Pessoa
Animais como nós
São como nós, homens e mulheres deste século. Falam, pensam, amam, vivem cada dia sem saber como será o próximo. Juntos fazemos parte do mesmo mundo. Podem não andar como nós ou construir coisas como nós, mas teem também os seus sonhos e as suas ansiedades, teem a sua linguagem e conversam entre eles, questionam-se. Nascem, crescem e morrem.
Animais como nós
São como nós, apesar de sermos gatos e eles ratos, porcos e eles corvos, burros e eles mochos, cães e eles cobras. Todos seguimos a nossa natureza. Podemos não falar a mesma língua, podemos estar divididos entre presas e predadores, mas todos tentamos sobreviver e ver o sol nascer para mais um dia. Todos temos medo de alguma coisa.
Animais como nós
São como nós, atados uns aos outros, sentindo com o seu coração frouxo ou apertado. Nós que são parte da mesma corda, mas que são todos diferentes. Cada nó é uma só criatura, mas todos partilham a mesma terra e o mesmo tempo. Cada nó só sente o que está à sua volta, mas todos procuram dar sentido ao que sentem. Quando o vento sopra mais forte e a corda se rompe, são nós que se desfazem e novos nós que se podem criar.
Apresentação
Animais Como Nós é um jogo para três pessoas com uma duração aproximada de trinta minutos por volta. Em cada volta, há três vozes que rodam entre os três jogadores: o Animal, o Coração e o Vento. O Animal quer viver, o Coração quer sentido e o Vento quer mudança. Uma volta termina quando todos os jogadores tiverem tido a sua vez como Animal, Coração e Vento. Ao fim de cada volta, os jogadores podem dar o jogo por terminado ou podem dar outra volta. Se terminarem o jogo, podem continuar a jogar mais tarde a partir das voltas que já deram ou podem simplesmente começar um novo jogo.
O objetivo do jogo é criar histórias sobre três Animais Como Nós a partir do conflito entre as várias vozes. Quando um jogador é o Animal, o seu propósito é entrar dentro dessa personagem dizendo o que ela diz e o que ela faz. Quando é o Coração, o jogador fala pelas várias personagens que convivem com o Animal de modo a descobrir um sentido para a história da sua vida, seja ele qual for. Quando é o Vento, o jogador é a voz que descreve o mundo onde o Animal se move e quer que a história avance de modo a que algo de novo aconteça.
Para jogar, é primeiro necessário ler este texto e o leitor que seguir estas indicações para explicar o jogo ás duas pessoas que vão jogar com ele é chamado de Guia. Esta não é uma voz como as outras, mas sim um papel que é desempenhado fora do jogo por uma pessoa que ajuda as outras a aprender como é que Animais Como Nós funciona. O Guia faz isto respondendo ás dúvidas dos outros jogadores e colocando questões que ajudem a explicitar o que cada jogador quer dizer. Se o tempo para jogar for limitado, cabe também ao Guia controlar a duração de cada volta lembrando aos jogadores que teem cerca de dez minutos à vez para determinar como a história de cada Animal se desenrola. Finalmente, o Guia também deve estar atento se houverem certos assuntos ou temas sobre os quais um outro jogador se sinta desconfortável ou que possam não ser adequados para sua idade. Como a história de cada Animal é criada em conjunto e evolui de forma inesperada, o Guia deve identificar antes do jogo começar se existem ou não certos conteúdos de ficção com os quais os jogadores não se sintam à vontade. Se o tempo para jogar for limitado, os jogadores deverão evitar estes conteúdos na criação da sua história ou poderão só referir-los indiretamente. Se o tempo para jogar puder estender-se para lá da meia-hora por volta, o Guia poderá conversar com os outros jogadores para juntos conseguirem explorar todos os assuntos ou temas que, à partida, não conseguiriam ver postos em causa numa história que estão a criar, mas que, confiando uns nos outros, poderão mesmo abordar ao nível da ficção que estão a jogar. Nestes casos, será recomendável fazer um intervalo entre cada volta para descontrair e debater estas questões.
O material necessário para jogar é:
- uma dúzia de pedrinhas, todas diferentes, todas iguais;
- pelo menos três cópias da ficha de azulejos;
- três lápis afiados, uma borracha;
- um espaço onde se possa conversar confortavelmente;
- um relógio para controlar o tempo.
Mundo
No início do século XV em Portugal, a vida nos matos, trilhos, vilas e quintas desta terra cresce e floresce à custa de muito sacrifício. Há sempre aqueles que sofrem e aqueles que prosperam, mas ninguém sabe ao certo de que lado estará amanhã. Dia e noite, cada animal à sua maneira enfrenta os desafios que lhe cabem: encontrar comida, acasalar, fazer um ninho, resguardar-se do frio, marcar território, cuidar dos filhos, sobreviver a predadores, lamber as feridas, evitar a crueldade dos homens e eventualmente aprender a viver debaixo deles. Pequenos e grandes, do mato ou das quintas, do céu ou da terra, todos os animais teem a sua própria perspetiva sobre o mundo e, se alguns só procuram a companhia daqueles que são da sua raça, outros conseguem entender-se com vários animais apesar de falarem línguas diferentes. Talvez até com os homens e com as pedras seja possível falar.
Este mundo ficcional está algures entre o nosso mundo real de há seiscentos anos atrás e o mundo das nossas fábulas de criança. Aqui não há animais antropomorfizados disfarçados de avozinha ou calçados com botas, não há bruxas malvadas ou fadas mentirosas, mas há tempestades e incêndios. Aqui os gatos andam em quatro patas e as ratazanas cheiram mal, os animais matam-se uns aos outros e ninguém vive feliz para sempre. A beleza deste mundo é brutal e quase sempre invisível. Um animal convive todos os dias com a vida e com a morte e é fácil ele se questionar se o seu único propósito neste mundo é servir de comida para outros animais ou, até pior, para ser triturado pela roda dentada da cega crueldade humana.
Alguns animais são solitários, outros isolam-se com a sua família, alguns dependem dos homens, outros organizam-se em grupos, alguns querem que o seu nome perdure depois da sua morte, outros só querem morrer em paz. Todos adaptam-se ás suas circunstâncias mas, por vezes, procuram algo de permanente, algo que vá para além da vã espiral dos dias e das noites. Cada animal tem a sua própria visão do mundo formada não só pelas características da sua espécie e pelas experiências que sofreu, mas também pela sua inteligência e personalidade. Talvez, para um animal que viva perto da terra, o céu à noite não pareça mais do que um pálido reflexo da textura e do cheiro da vegetação e, para um animal que viva quase sempre no céu, a mesma terra pareça só conseguir existir graças ao sol e à lua. Tal como os homens, os animais sentem não só com os cinco sentidos, mas também com o coração, não seguem só os seus instintos. No entanto, ao contrário dos homens, os animais não conhecem ideologias, filosofias ou religiões, sentem empiricamente como os homens sentiram o mundo pela primeira vez há milhares de anos atrás, encontrando as mesmas angústias e procurando as mesmas respostas. Para que é que estamos aqui? Que vida há para além da morte? Que sentimento é este de compaixão que sentimos uns pelos outros? Alguém criou este mundo? Poderemos matar ou morrer em nome de um bem maior ou por mera vingança? São as eternas perguntas em busca da resposta absoluta que nunca satisfaz a todos mas, na história de cada animal, poderemos talvez encontrar uma entre muitas possíveis respostas.
Neste mundo, os jogadores dão voz a animais como ratos, gatos, corvos, porcos, galos, cães, mulas, cobras, mochos, esquilos, lobos, patos, lagartos, javalis, veados, raposas, texugos, etc. Animais do mato ou da quinta, criaturas que podem matar e serem mortas por outras criaturas. Neste jogo, a voz do Animal nunca encarna seres humanos, insetos ou animais aquáticos, cada história não terá como protagonista um caçador, uma borboleta ou uma truta, apesar de estes animais poderem ser muito importantes como personagens secundárias. Se os jogadores quiserem, podem encarnar animais da praia e do mar como uma gaivota, um lobo-marinho ou um caranguejo, mas, nesse caso, todos os três Animais necessitam de pertencer a este ambiente. A hipótese de as suas história se cruzarem e de eles interagirem uns com os outros tem de existir sempre, bem como a possibilidade de matarem ou serem mortos, nem que seja pelas mãos dos homens. Por outro lado, a voz do Coração pode encarnar mesmo qualquer animal que lhe pareça apropriado, sejam aranhas, formigas, agricultores ou borboletas, e até pode excecionalmente introduzir personagens como uma árvore ou uma rocha antropomorfizada, desde que possa fazer sentido o Animal poder ouvir e falar com estas criaturas. Qualquer animal pode ser introduzido também pela voz do Vento desde que este seja um claro inimigo do Animal ou simplesmente fizer parte da paisagem, ou seja, se não houver nenhum diálogo possível.
Todos os animais teem um nome que lhes é dado pelos seus pais ou pelos seus donos, sendo que também podem dar a si próprios um novo nome. Tal acontece porque é habitual os nomes terem algum significado mais ou menos inerente como por exemplo Jigajoga, Caganeta, Brancaflor, Calcaterra, Fraca-Chicha, Batalha, Rifão, Pedranceiro ou Verruco. Assim, um animal pode querer marcar algum momento determinante da sua vida dando a si próprio um nome apropriado. Durante este jogo, os nomes indicam claramente que uma personagem é alguém com quem o Animal pode conversar, ou seja, o Vento não dá nomes a ninguém. Um nome contém sempre nele um potencial de permanência que é contrária ao propósito do Vento.
Neste mundo, há homens que constroem igrejas e animais que sonham todas as noites, mas não há qualquer prova final da existência do divino. Tal como no mundo real, há muitos extremos e meios termos, há tantas ideias diferentes como flores num campo. Há quem não acredite em nada que não possa sentir com os seus cinco sentidos e há quem só acredite naquilo que possa sentir com o coração. Há quem acredite em profecias e quem se aproveite dos piores medos dos outros animais para os comandar. Há quem procure se transformar num ser humano e quem julgue saber tudo o que os homens nunca saberão.