As regras da arte

Os comentários feitos à minha entrada anterior sobre Actual Plays puseram-me a pensar sobre mais uma (há tantas!) linha de demarcação, ou de divisão de opiniões, entre os roleplayers, que é sobre a importância e o papel das regras nos RPGs. Posto simplesmente, o espectro parece ir do extremo “as regras não interessam para nada, a gente deita-as fora e deixa que o GM improvise como quiser” ao “o jogo são as regras, e as regras são o jogo, e se alteras uma vírgula não estás a jogar aquele jogo”.

A minha posição encontra-se primariamente ancorada na definição que fiz de RPG na minha entrada anterior, mas também noutra vertente que me atrai no RPG. Que é: eu vejo o RPG como uma forma de expressão artística. Não posso dizer “arte”, pois alguns especialistas já me caíram em cima dizendo: “Epá, mas onde está a obra? Sem obra de arte, não há arte…” Pois a criação é efémera, e apenas apreciada pelos seus criadores, as pessoas à volta da mesa.

Daí talvez venha a minha preferência pelos Actual Plays narrativos. Há algo de trágico quando a experiência artística se perde, existindo só naquele momento e depois, apenas presente na memória fugaz dos participantes. Uma pegada na areia da praia à maré alta, e a maré sobe depressa. Fico com a impressão que a narrativa deixa entrever algo desse processo criativo e até, com o devido talento, haver uma transição de uma criação artística para uma obra, que pode ser um conto, ou um romance, ou etc. Deus sabe como já houve o contrário, romances e contos que mais parecem descrições de sessões de jogo, especialmente na ficção, oficial e não só, sobre os settings de jogos publicados.

Assim, as regras são, para mim, uma ferramenta importante, mas apenas uma ferramenta, no processo de ser outra pessoa noutro lugar e divertir-me com isso. Assim, se um resultado de uma regra num jogo não for do agrado geral, porque não mudá-la? É uma ressalva, aliás, que aparece em imensos manuais de RPG, os próprios autores a permitirem e até, porque não, a encorajarem a personalização de um dado jogo a um dado grupo. Se a regra não serve, o jogo não presta? Bom, a grande maioria das regras pode agradar, não é? E como vejo as regras como ferramentas, seria o mesmo que dizer que, tendo um problema na minha aparelhagem em casa, vou deitar fora a minha caixa de ferramentas por não ter a ferramenta exacta que me faz falta, e, depois, não posso usar, por exemplo, uma cotonete com álcool para resolver o problema porque isso não está na caixa de ferramentas.

Por outro lado, não sou pessoa de ler um RPG e começar logo a alterar regras. Prefiro começar a jogar como está escrito, e só fazer as alterações que forem precisas ou que se ache que seriam mais giras de fossem de outra maneira depois de usar as regras como estão escritas. É a única maneira de perceber a intenção do autor, e até de perceber quais os méritos e os desméritos de um conjunto de regras. Na minha experiência, a diferença entre ler um sistema de regras e jogá-lo de facto pode ser considerável.

E isso de as regras serem o jogo e o jogo as regras tem alguma razão de ser num jogo mais competitivo cujo objectivo é ganhar. Aí as regras têm mesmo de ser usadas à risca para a competição ser justa. Mesmo assim, dizem os aficionados de coisas tão diferentes como Poker e Xadrez que só saber as regras é a melhor maneira de perder. Há mais livros sobre estratégias de xadrez do que as regras, e o Poker tem muito do conhecimento da natureza humana que não vem descrito em nenhuma regra.

Depois, na minha experiência de RPG, é mais importante divertir-me a ser outra pessoa noutro lugar do que estar a jogar o jogo xpto. Lia-se muito sobre grupos que usavam uma abordagem de Buffet quanto às regras de RPG. Estes criariam uma campanha usando, por exemplo, as regras de magia do Ars Magica, a resolução de tarefas do Runequest, e as regras de personalidade e paixões do Pendragon. Não sei se alguém alguma vez usou esta combinação específica, mas não me admirava. Não me importaria nada de jogar assim, conhecendo a priori bem as regras que vou usar.

A meu ver, os títulos dos jogos são mais importantes para os detentores dos direitos de autor do que para mim, que não ganho um tostão pelas vendas dos jogos com o dado rótulo. Já vi o argumento – se não usas o jogo como foi escrito, para que o compraste? Não foi deitar dinheiro à rua? Daí que respondo – eu paguei, faço o que eu quiser com isto. Portanto, o argumento dá para ambos os lados. Quando compro uma caixa de bombons não sou obrigado a comê-los todos. E posso tirar mais satisfação dessa caixa se comer apenas os que gosto, do que comer também os que não gosto só por completismo. Quanto às misturas, um chocolate é delicioso sozinho. Mas o mesmo chocolate misturado com farinha e ovos pode dar um bolo de chocolate ainda mais delicioso, como um que se faz cá em casa.

Dito isto, sou preguiçoso e prefiro jogar um sistema onde faça um mínimo de alterações, quanto menos melhor. E eu gosto de regras. Gosto de lançar dados. Gosto do suspense e do drama causado pela indeterminação de um lançamento de dados. Divertir-me-ia com uma experiência “sem regras”, se calhar. Nunca participei em nenhuma. Mesmo nessas, os senhores de “deitar fora as regras” estão um pouco a substituir umas regras objectivas de resolução das indeterminações, por umas regras subjectivas de confiança no mestre do jogo. Suponho que sejam gostos. Eu, como GM, também gosto da indeterminação que vem dos lançamentos de dados, coisa que me estaria completamente negada sendo eu a decidir tudo.

Há ainda outra divisão, que é a se o GM tem o direito ou não de “suspender” temporariamente as regras numa dada situação. Os casos mais ouvidos dizem respeito a maus lançamentos de dados, quer para um PC quer para um NPC em “maus momentos” da sessão, como um jogador perder um PC a 1/3 da sessão e ter de ficar a olhar o resto da sessão, ou estar apressadamente a fazer outra personagem que terá de ser metida à pressão na sessão, ou, conversamente, um NPC importante que deveria aparecer no final da aventura também é eliminado muito cedo na sessão.

Pessoalmente, nem me importo que o GM só use os dados para sonoplastia atrás do ecrã. Não me importo nada de ser iludido pelo GM na condução da história, desde que esta faça sentido e a minha personagem tenha intervenção e protagonismo nela – ou a aparência de intervenção. Mas isso sou eu, que parte do que me diverte no RPG é ver a história da party desenrolar-se como um filme ou uma narrativa. A tal criação artística efémera de que falei acima. As regras e o GM servem para fazer isso. Para outros será outra coisa. Será vencer os obstáculos, ou a imersão completa noutro mundo (algo também importante para mim), ou a utilização extensa dos seus poderes… Por outro lado, tenho de sentir que nada é certo. Tenho de sentir que a derrota é uma possibilidade. Aí entram as regras. Suponho que tudo dependerá da situação. Como disse, considero as regras mais uma ferramenta para a diversão da party, a usar quando ajudam a tal e a “ajustar” quando a coisa não corre tão bem. Claro que, se não for preciso ajustá-las, melhor ainda.

Para terminar, tenho ouvido falar muito na parte de “jogo” do RPG a que se deve dar primazia. Ok. Então vejamos duas culturas em que o RPG é extremamente popular, a anglo-saxónica e a francesa. São também as únicas que conheço bem. Nessas, a palavra para jogo (“game” e “jeu”) é também a mesma para brincadeira, e o verbo “jogar” (“to play” e “jouer”) é o mesmo que “brincar” e “interpretar”, “fazer teatro”. Um actor no tempo de Shakespeare era um “player”, e uma peça de teatro é “a play”. Assim, na cultura de origem do RPG a diferença entre jogar, brincar e fazer teatro é muito mais difusa que na da língua de Camões. Assim, vejo nesta etimologia uma raiz mais de diversão, brincadeira e interpretação de papéis do que regras e competição. Não vejo o RPG sujeito às regras, mas sim as regras sujeitas ao role playing game.

...do autor para aumentar a visibilidade.

Roger Caillois, Os Jogos e os Homens, Cotovia. Primeiro autor a teorizar os rpgs, tanto quanto sei... em 1958. Para o Caillois o rpg é incompatível com o jogo regrado, é play sem game. Talvez por isso ele não podia prever algo como o D&D e o nosso hóbi. Felizmente quem o criou não leu Caillois, ou não tinhamos hóbi. O que quero dizer é que a ideia do systemless game, do role without roll, não funciona. O play pode ter piada por curtos espaços ou no caso de crianças cuja vida é quase só play. Mas para um adulto em que a vida é sobretudo game, manter o interesse e a continuidade do hóbi exige mesmo o game e é este que dá sustentação e continuidade ao play.

Sérgio Mascarenhas

[quote=smascrns]

Roger Caillois, Os Jogos e os Homens, Cotovia. Primeiro autor a teorizar os rpgs, tanto quanto sei... em 1958. Para o Caillois o rpg é incompatível com o jogo regrado, é play sem game. Talvez por isso ele não podia prever algo como o D&D e o nosso hóbi. Felizmente quem o criou não leu Caillois, ou não tinhamos hóbi. O que quero dizer é que a ideia do systemless game, do role without roll, não funciona. O play pode ter piada por curtos espaços ou no caso de crianças cuja vida é quase só play. Mas para um adulto em que a vida é sobretudo game, manter o interesse e a continuidade do hóbi exige mesmo o game e é este que dá sustentação e continuidade ao play.

[/quote]

...o que não contradiz nada do que eu disse, nem do que eu disse que gosto ou que faço. Diabos, eu gosto de regras. Mas mesmo no Direito a regra pode ser temperada pelo bom senso das figuras da autoridade, desde a polícia aos magistrados. Não há até a figura da Greve de Zelo, que é o seguir os regulamentos todinhos à risca sem desvios, causando o sem número de encravanços e prejuízos?

Aliás, o meu GM, o Dwarin, teve uma disputa algo tensa com um rapaz que dizia jogar Cthulhu sem usar nenhuma regra nem lançamento de dados, apenas com a decisão do GM. E perguntámo-nos antes se estariam de facto a jogar Cthulhu ou uma espécie de teatro freeform orientado por um GM tendo por tema uma investigação do Mythos de Cthulhu. Para mim isso não é muito importante. Se estavam a gostar, óptimo. O importante foram as declarações do rapaz que jogar de outra maneira era jogar mal.

Mas sim, há quem jogue campanhas sustentadas sem usar as regras publicadas, ou só as aflorando de leve - coisa que eu não faço. Mas contra factos, não há argumentos. Podes argumentar que eles podem não usar as regras escritas no jogo, mas umas regras mais tácitas de confiança no GM. E aí, concordo inteiramente contigo.

systemless game != role without roll

Exemplos:

Active Exploits, Amber, Everway, Marvel Diceless, Nobilis, e minha tentativa Dara (que merecia melhor do que morrer lentamente num google doc qualquer).



–~~–

Em breve coisinhas novas!

Líder inconsciente do ultra-secreto grupo anti-D&D (mas só na edição 5.3)

Mas isso são jogos sem sistema ou antes sem elementos aleatórios?

Systemless =/= randomless ou diceless ou roll-less... Tanto quanto sei, os jogos que indicas têm sistema de jogo, incluindo o teu! (Tal como o Xadrez, as Damas ou o Jogo do Galo, aliás.)

Sérgio Mascarenhas

Ainda há pouco tive uma conversa sobre isto, curiosamente. Que giro como as coisas confluem.

Independentemente da quantidade de regras que se altere, independentemente da Regra 0 (que o D&D 4 não tem), independentemente da maneira como estamos habituados a jogar há anos (e por isso é o jogo que está errado e não a nossa preguiça em aprender a jogá-lo), importa reter que nem todos os jogos se jogam da mesma maneira.

E isto sem entrar em conflicto nem com a ideia que o rpg é uma forma de arte, nem com a ideia que o rpg é uma forma de brincar, muito menos com a ideia de que não é divertido (ou errado!) fazê-lo.

Exemplos prácticos, razões diferentes:

Não se pode jogar Mutants and Masterminds da mesma maneira que se joga o Smallville.

Não se pode jogar o Star Wars (versão d6) da mesma maneira que se joga o Star Wars (versão WotC).

Não se pode jogar o Realms of Cthulhu (Savage Worlds) da mesma maneira que se joga o Trail of Cthulhu (Esoterrorists).

Não se pode jogar o Pendragon da mesma maneira que se joga o D&D 4.



–~~–

Em breve coisinhas novas!

Líder inconsciente do ultra-secreto grupo anti-D&D (mas só na edição 5.3)

Sem elementos aleatórios.



–~~–

Em breve coisinhas novas!

Líder inconsciente do ultra-secreto grupo anti-D&D (mas só na edição 5.3)

E eu dei-te vários exemplos de roles sem roll que funcionam.



–~~–

Em breve coisinhas novas!

Líder inconsciente do ultra-secreto grupo anti-D&D (mas só na edição 5.3)

Epá, nem mais! Fazendo minhas as palavras de Steve Kenson em Icons:

"I don't believe in the concept of "One True Game".

O que pode nem sempre ser bom, pois faz-me querer ler, comprar,experimentar e jogar todos os RPGs debaixo do céu... Embarassed

... eu não pus isso em causa. É perfeitamente claro que roles podem funcionar sem roll, o que eu penso que não funciona é roles sem system. Conceitos diferentes.

Sérgio Mascarenhas

Então quando dizes que “o role sem o roll não funciona” queres dizer exactamente o quê?



–~~–

Em breve coisinhas novas!

Líder inconsciente do ultra-secreto grupo anti-D&D (mas só na edição 5.3)

Mas não te estava a contradizer, estava a reforçar as tuas ideias. Isto não é só bater no ceguinho, também há que lhe dar uns amendoins de tempos a tempos.

A verdade é que o sistema importa. Como diz o Rui, podemos manter o universo de jogo mas se mudarmos o sistema o jogo vai ser diferente. É claro que pode haver jogadores que têm a sua maneira de jogar muito própria e que depois adaptam qualquer sistema (e mesmo qualquer universo) ao seu... sistema de jogo pessoal. O facto de não jogarem de acordo com o livro não quer dizer que não têm livro, têm é o livro deles. Alguns acabam por o pôr no papel e publicar...

Sérgio Mascarenhas

Deixa ver... é verdade, digo isso. A expressão é infeliz, o que queria dizer era sem o rule... as regras, incluam ou não o recurso a algorítmos de jogo aleatórios.

Seguramente que se podem jogar jogos sem dados ou outros mecanismos aleatórios. Aliás, no meu há muito encerrado e inacabado projecto Gentlemen Explorers (na RPGnet) eu criei mecânicas que procuravam dar a opção entre random e randomless em tais termos que os resultados fossem estatisticamente idênticos, para que até fosse possível um jogador estar a jogar random e outro randomless sem que isso tivesse impacto no jogo.

Sérgio Mascarenhas

Obrigado pela alcagoita. Ooook!Happy