China Miéville sobre Mistério vs Realismo em rpg

Retirado da fonte de todo o conhecimento que é a rpg.net.

"At Readercon this weekend, China Miéville said, in his guest of honor interview, that one of the things he notices in both the audience for his work and in himself is a tension between a desire for otherworldly mystery and a desire for detail, detail, detail. He noted RPGs as an expression of this tension, a sublimation of geekiness within the rules and tables and worldbooks of the game that was often at odds with the fantastic potential of the material, and sometimes of the source material itself—he noted that the game of Call of Cthulhu seemed to utterly miss Lovecraft’s point: Cthulhu goes from being a creature so great and terrible that it can’t possibly be described or comprehended to being a creature with 100 hit points. (I may be mangling China’s argument, since it’s based on memory, so please blame me if you disagree, not him.)

This tension between the desire for that-which-is-so-amazing-it’s-incomprehensible and that-which-can-be-quantified is one most of us who are readers of SF probably share to some extent or another, and it can be a productive tension, perhaps even one of the foundational tensions in fantastic literature, the tension that propels much good fantasy writing into a realm that borrows from traditions of allegory, surrealism, and slice-of-life realism but doesn’t comfortably fit into any one camp, and, at its best, is therefore richer than each."

Uma entrevista mais alargada onde ele expõe as mesmas ideias aqui.

Comentários?

Acabei de ler o Exalted Abyssals e posso dar um exemplo do que foi dito ai: No final do livro eles dão muito boas e concretas dicas ao GM sobre como lidar com os Deathlords e outras mega criaturas que tais, o importante aqui é lidar não definir até à folha de personagem os bichos (demasiado detalhe). Contudo o mesmo livro também trata um universo de jogo passado no mundo dos mortos, e aqui por sua vez não só falha no detalhe que eu como GM preciso para poder tornar neste universo em algo vivo e cheio de cor para os jogadores, como também não me dá dicas concretas sobre como o fazer, apenas o sempre genérico "faz como achares mais fixe", que é um concelho muito recorrente em muitos jogos (não só da WW hehe) e que não ajuda em nada, o que a meu ver faz com que depois fique com vontade de ter livros que me tragam esse tipo de detalhe. No fundo deve ser tudo marketing.

... é a primeira coisa a que associo esse nome, que é bastante sui generis. Não comento essa opinião dele além de dizer que ele está a atribuir um nível demasiado sério a um hobbie. Como diz o outro "you ain't being funny anymore".

Já agora, ele também tem umas lindas ideias da obra do Tolkien...

 

É um comentário muito interessante, e identifico-me bastante com essa tensão. Dantes, quando ainda tinha tempo para D&D, começava com um mundo mágico que se perdia à medida que eu começava obsessivamente a catalogar monstros, feitíços e objectos mágicos. Aconteceu-me o mesmo em Immortal - a magia e o mistério que enchem o setting do jogo foram-se perdendo à medida que eu detalhava e descrevia a história e política dos Imortais em Portugal.

Nessa altura, esse género de conflito era bastante improdutivo para mim. Eu criava mundos e histórias grandiosas que se íam perdendo à medida que eu tentava catalogar e dar “stats” a todos os países, personagens e segredos. Várias campanhas (principalmente de D&D) começaram com um “sense of wonder” que se diluiu com o tempo até eu ou os jogadores se fartarem e decidirem começar do zero. Quase que me fez acreditar que as campanhas longas acabavam em merda em 100% dos casos.

Acho que, desde que consegui refrear o impulso de catalogar tudo (não ter tempo nenhum ajuda!) as coisas têm corrido melhor nesse campo. Por vezes esse impulso ajuda bastante (como diz o Mieville), desde que em doses pequenas.

Por exemplo, ocasionalmente desenvolvo com grande detalhe mapas, preocupo-me com a coerencia geofísica e social dos mundos, ou com o modo geral como a magia funciona. Para mim isso, quando exposto aos jogadores (e mesmo que seja irrelavante para a história que eles estão a jogar!) mostra que há coerência por trás do mundo, que há coisas a acontecerem para além deles, e para mim isso dá vida ao setting. Ainda por cima (e contra-intuitivamente!) aumenta o sentido de mistério - mostra uma ordem escondida que está lá, que talvez domine tudo, mas que os personagens e os jogadores nunca poderão alcançar :slight_smile:

Mas… Se eu fizesse isso com mais obsessão, ou se o tentasse trazer mais para a mesa de jogo, acho que os jogadores íam sentir exactamente o contrário, porque uma pessoa só não consegue gerar histórias e settings com toda a complexidade do mundo real, só consegue quando muito pintá-los, dar a ideia. Sempre que tentamos aumentar o detalhe revela-se que são coisas construídas, que não são orgânicas, e o mundo soa a falso. Descobrem-se os segredos e eles são simplistas, faceis de compreender. Lá se vai o mistério.

Outro exemplo. ShadowRun é um RPG em que as coisas tendem a ser catalogadas - poderes, feitíços, cyberware, armas, etc. Mas quando escrevemos os livros que detalham o setting, pedem-nos especificamente para refrearmos essa tendência catalogadora. Em vez de listar inimigos e aliados, pedem-nos que exponhamos diferentes pontos de vista, e se forem contraditórios melhor.

Acho que este “esborratar” deliberado do setting, aliado à maneira como cresceu organicamente (sem ter uma única mente directora ou um único escritor) ajuda bastante a aumentar o tom de mistério do setting, a dar a sensação que há N backstories que se cruzam e descruzam, que há N coisas a acontecerem por trás das cenas que dão vida ao setting. E claro, a falta de detalhe encoraja os grupos individuais a darem a sua própria explicação, a ligarem as histórias ao que se passou na sua mesa de jogo, ou seja, a ligarem os personagens ao setting sem terem que abdicar das suas próprias histórias. Há muitos mistérios no mundo, mas no caso X isso deve-se tudo a nós :slight_smile:

Mas… Se houvesse uma secção a “detalhar tudo” para os leitores, ou se os plots fossem demasiado detalhados, acho que o mistério todo se perdia e o ShadowRun ficava igual a outros jogos em que os jogadores ou seguiam o metaplot ou ignoravam o material publicado.

No fundo, para mim o caos do mundo real é demasiado grande para ser catalogado, e os RPGs que o tentam fazer acabam sempre por soar a falso, por serem transparentes - mas alguma catalogação aqui e a ali ajuda a dar uns ares de consitência, de ordem interna ao setting que podem ao explicar uma série de “pequenos mistérios”, aumetar grandemente a sensação toda do mistério maior :slight_smile:

Rambling,
JP

PS: notem que não sou GM há 6 meses, por motivos profissionais, pelo que não testo estas ideias há algum tempo :stuck_out_tongue:

Hmm, política à parte, a obra do Mieville e do Tolkien são duas aproximações completamente diferentes à Fantasia como género de escrita. O Tolkien é alegórico, escreve sobre o Bem e o Mal, com batalhas épicas e uma certa simplicidade rural dos “good guys”. Na minha opinião, é uma boa inspiração para o género de aventura heróica sem grandes confusões entre “bem” e “mal” mas com muitos momentos épicos, e dilemas morais razoavelmente claros - faço o mal agora para o maior bem depois ou não?

O Mieville é mais sujo, mais orgânico e urbano. Os personagens dele estão cheios de defeitos, alguns bastante irritantes. Também há momentos épicos mas nunca é tão claro quem são os bons e os maus. Aliás, os “heróis” de pelo menos dois dos livros de New Crobuzon confrontam-se com dilemas morais, e se num caso o “herói” não faz nada porque não se consegue decidir, no outro o “herói” é tão decidido que faz merda da grossa e consegue lixar a vida a toda a gente - enquanto pensa convictamente que fez o melhor para todos :slight_smile:

Na minha opinião, é boa inspiração para quem gosta do Sword & Sorcery - Conan, Elric e afins - de histórias em mundos sujos e brutos e decadentes, sem preto nem branco, mas que queira um toque mais urbano e “sofisticado” (leia-se, complexo em termos de política, relações humanas, tecnologia etc.) que no S&S tradicional.

Best,
JP

Podes não correr nada há um certo tempo mas leio com interesse o que escreveste e concordo com a tua opinião. Um setting demasiado detalhado afunda-se sobre si mesmo no peso da sua natureza monolítica quando temos considerar todas roldanas e engenhos que o fazem mexer só para criarmos uma história.

Por outro lado, quando por exemplo criamos algo baseado apenas no mundo real tentamos quase sempre apenas extrair dele um "slice of life" que realce os temas que pensamos abordar ou as temáticas.

O que não quer dizer que professionalmente, como prática de algumas editoras de RPG, não hajam universos publicados que apesarem de possuir direcções editoriais bem delineadas deixam contudo transparecer a obscuridade e por vezes ignorância dos seus habitantes nas suas páginas.

"Se alguma vez sou coerente, é apenas como incoerência saída da incoerência." Fernando Pessoa

[quote=Vitor] Não comento essa opinião dele além de dizer que ele está a atribuir um nível demasiado sério a um hobbie. Como diz o outro "you ain't being funny anymore".[/quote]

Toda a gente tem direito à sua opinião, e todos os outros têm direito a discuti-la.

Eu por mim concordo com ele: torço o meu grande nariz quando vejo o Grande Cthulhu reduzido a "tem 100 Pontos de Vida", ou algo parecido.

Word.

É óbvio que esse senhor tem direito à sua opinião, mas parece-me a mim que fala sem saber muito bem do que fala. Como vocês dizem, e muito bem, há que saber dar a opinião mas com fundamento. O RPG Cal of Cthulhu quantifica o Great Cthulhu em termos mecânicos atribuindo-lhe pontos de vida, armadura, etc, como uma personagem normal. Para uns, isto retira o mistério e reduz um ser inqualificável a um conjunto de número. Mas há que ter em conta que o próprio Lovecraft atribui a Cthulhu um número limitado de pontos de vida.

Para quem leu a história Call of Cthulhu, lembra-se muito bem que o marinheiro Johansen atacou o Great Cthulhu com um barco atirando-se contra a sua cabeça e o choque reduziu Cthulhu a uma núvem disforme. Por isso, depreende-se que Cthulhu tem um número limitado de pontos de vida e pode ser afectado por coisas materiais. Isso não significa que o resultado da redução dos pontos de vida de Cthulhu a 0 signifique que este morra. Laughing

Como dizia o outro, o que acontece se atirarem um míssil nuclear contra Cthulhu? Ficam com um Cthulhu radioactivo e raivoso. Tongue out

[quote=Dwarin]Mas há que ter em conta que o próprio Lovecraft atribui a Cthulhu um número limitado de pontos de vida.[/quote]

Como diz?

[quote=Dwarin]Para quem leu a história Call of Cthulhu, lembra-se muito bem que o marinheiro Johansen atacou o Great Cthulhu com um barco atirando-se contra a sua cabeça e o choque reduziu Cthulhu a uma núvem disforme. Por isso, depreende-se que Cthulhu tem um número limitado de pontos de vida e pode ser afectado por coisas materiais. Isso não significa que o resultado da redução dos pontos de vida de Cthulhu a 0 signifique que este morra.[/quote]

Em toda a honestidade, não me parece que em qualquer das histórias escritas por Lovecraft estivesse alguma vez a intenção de reduzir quem quer que fosse a 0 Hit Points. Posso enganar-me muito, mas acho que nessa altura nem sequer havia a ideia dos Hit Points.

A menos, claro, que estejas no gozo e a tua piada me esteja a passar completamente ao lado.

Não, não é uma piada. É uma interpretação da história. Se o Cthulhu leva com um barco na carola e pode ser reduzido a uma núvem disforme, em termos mecânicos isso significa que alguém lhe reduziu os pontos de vida o suficiente para o destabilizar por pouco segundos que fosse. Volto a repetir, o facto de reduzirmos os pontos de vida do Cthulhu não significa que o matemos. Na verdade o roleplay deixa explícito o seguinte:

"At zero hit point, Cthulhu bursts and dissolves into a disgusting, cloying greenish cloud, then immediatelly begins to reform into his horrible form. He needs [variable] minutes to regain full solidity."

Isto está de acordo com a passagem do livro em que Johansen choca com o seu barco contra a cabeça do Cthulhu e o reduz a uma núvem disforme. Enquanto foge o marinheiro ainda tem tempo de ver a núvem a recuperar a sua forma normal.

O próprio Lovecraft reduz muita vezes os Great Old Ones a seres com formas quantificáveis. No Horror in the Museum, uma das personagens assusta a outra vestindo a pele de um Dimensional Shamber (o que significa que se pode matá-lo, ergo pontos de vida). Na mesma história, uma das personagens tem um Great Old One fechado dentro de um armário.

Eis o que aconteceria, em termos de jogo, num encontro com o Grande Cthulhu:

Keeper (GM): Vocês vêem a forma horrenda do Grande Cthulhu, com 2km de altura, a correr na vossa direcção. Lancem a vossa sanity.
(Partindo do princípio que todos conseguem ser bem sucedidos perdem 1d10 de Sanity. Falhanço implica perder 1d100 pontos de Sanity).
Keeper: O Grande Cthulhu chega ao pé de vocês. Vocês morrem todos depois de ele vos espezinhar, agarrar nos seus tentáculos, mutilar e [inserir outras gruesome descriptions]. E pronto, acabou-se. Tongue out

Quanto ao facto de não existir hit points na altura, não significa que o Lovecraft não pensasse no Grande Cthulhu como tendo uma forma e massa mensurável como o indica a história que ele escreveu. O RPG apenas traduz isso para pontos de vida. Mas isto é conversa para outro tópico que podemos começar se quiseres. Aqui já está muito off-topic.

Acho que estás a levar os comentários do Mieville demasiado literalmente. Ele criticou o facto do RPG quantificar a forma e massa do Cthulhu, como tu dizes, quando o Lovecraft se esforçava (quando escrevia) por preservar o mistério sobre a natureza do próprio Cthulu dos leitores, o que forma grande parte do apelo das histórias (pelo menos para mim - quanto mais ele fala do Mythos mais misterioso fica, o que é excelente :slight_smile:

Para mim, o CoC tem alguns pontos onde incentiva o mistério - a discussão sobre a verdadeira origem e história do Necronomicon e do nome Cthulhu em várias culturas, com pistas para caractéres chineses e tudo, sempre me fascinou e me fez querer jogar CoC.

Dar pontos de vida ao Cthulhu não é um desses pontos. Posso sempre ignorar, claro, mas deixa um gajo um bocado dsiludido ver os stats do Cthulhu depois de ter lido aquela discussão sobre o nome do bicho, e essas coisas tiram piada ao jogo.

Claro, tudo depende da forma como jogas o CoC. Se queres uma competição com os bichos, convém terem uma descrição mecânica (já joguei assim e é engraçado :slight_smile: Se queres explorar o mythos, então convém que o Cthulhu seja inquantificável. Pá, nem que eles pusessem qq coisa como “HPs: Uncountable”, até isso era melhor que um número :slight_smile:

JP

Tens exemplos assim à mão?

Para mim, settings ao mesmo tempo detalhados e que preservam um sentido de mistério são poucos. Há algum tempo que discuto as razões sobre isto com outra malta, principalmente para nos ajudar a escrever setting fixes :slight_smile:

Isto está ligado ao mistério vs. detalhe porque, para uma companhia de RPG vender livros sobre settings, tem que produzir detalhes. Senão acabava-se o jogo (ou só fazia regras - mais detalhes, mas esse é um assunto diferente). Uma questão importante nestes casos é: como é que publicar detalhes aumenta o mistério? Como é que se esconde, revelando, e se atrai a atenção da malta sem ser só pelo “instinto coleccionista”?

(Suponho que a malta de séries de TV como o Lost e o Battlestar Galactica têm o mm problema :slight_smile:

Os meus settings favoritos, em termos de serem orgânicos e razoavelmente caóticos, logo vivos e misteriosos, partilham três características gerais:

  1. têm varios escritores a escrever - ou seja, não são limitados a um ponto de vista;
  2. evitam o detalhe absoluto - ou seja, ao invés do Big Book of Everything focam-se em detalhes à vez, nem sempre com o intuito de cobrir o mundo inteiro (é aqui que artigos curtos em revistas ajudam);
  3. cada assunto é descrito de forma curta - ou seja, os escritores tiveram que sintetizar e não puderam falar de tudo (este para mim é fundamental - quando um autor tem poucas páginas é obrigado a detalhar o setting muito mais do que acaba por escrever no final, e o que transparece é que há muito que não foi dito; quando o autor tmem páginas a mais escreve tudo o que detalhou e isso nota-se na escrita, não há mais nada por trás do que já foi revelado).

Os meus settings favoritos que seguem estas regras +/-: ShadowRun (claro :), Trinity (não tenho a certeza dos autores variarem), D&D Mystara (infelizmente com momentos muito, muito maus em que o autor X resolveu detalhar tudo) e Immortal (1ª edição, e tb n tinha muitos autores).

Acho que isto continua on-topic :slight_smile:

JP

Bem, assim de repente estou-me a lembrar do Engel (apesar de haver uma revelação importante no meio do livro que parece que tira um pouco do mistério). Existe definitivamente algo por detrás dos segredos do setting e está bem orientado. Lembrei-me do Tribe 8 mas não sei consideras um metaplot fixo e inescapável como exemplo. :)

"Se alguma vez sou coerente, é apenas como incoerência saída da incoerência." Fernando Pessoa