Desolatio minime desolata


Folium XV

No dia seguinte, o 17 de Gelo Brilhante, deixámos Port Balifor às escondidas, e seguindo Laundo, depressa a cidade ficou para trás. Subimos por caminhos de cabras até chegarmos ao cimo de uma cordilheira ao fim do dia. No dia seguinte, andámos bastante e vimos finalmente a Desolação à nossa frente: uma terra negra e esventrada, dominada por um vulcão no horizonte e torturada pelos tremores por ele causados. A superfície rochosa da terra era fracturada por uma miríade de fendas que lembravam as rugas na testa de um ancião centenário, mas estas eram bem menos pacíficas: o laranja do fogo que elas expeliam ou o nevoeiro causado pelo vapor que dali se emanava traíam a grande agitação e o martírio que esta terra ainda sofria. Realmente, era impossível haver aqui vida permanente, assim pensávamos... Oh, como estávamos enganados.

Debatemos bastante tempo por onde devíamos seguir: se cortássemos a direito pela Desolação, o caminho para Kendermore seria directo e curto, mas difícil e perigoso, não só pela geografia acidentada mas também pelas temperaturas impressionantes que ali se atingiam. Tínhamos sobrevivido aos Deserto de Sal e de Khur, mas isto era algo completamente diferente, e muito mais letal. A alternativa era seguir pela coroa das montanhas que rodeavam a desolação, algo que demoraria bastante mais tempo mas que poderia ser mais seguro, pelo que acabámos por tomar esta decisão.

Como para nos provar que estávamos errados, o Destino achou por bem confrontar-nos logo com duas panteras estranhas, que pareciam feitas de lava e cuspiam fogo. Eram da Prole de um Dragão, segundo o Aprendiz, mas nós éramos mais duros, e derrotámo-las. Continuámos até à noite, mas quando olhámos, ao fim do dia, para o percurso que tínhamos feito, percebemos que traçáramos um percurso perpendicular ao que nos separava de Kendermore e que no fundo não tínhamos avançado nada em relação ao nosso destino. A Desolação continuava estendida aos nossos pés, eternamente dilacerada, mas como que nos olhando sarcasticamente à espera que finalmente percebêssemos que era por ali que tínhamos de ir.

A noite passou, e a maior parte do dia seguinte também.

A Desolação

Gelo Brilhante, dia 19.

Neste dia, decidimo-nos afinal por atravessar a Desolação em vez de continuar pelas montanhas, mas para fugir do calor insuportável do dia, viajaríamos apenas de noite. Por isso, descansámos até à sexta hora da tarde, quando o sol já se punha e a temperatura era suportável. Viajámos sem incidentes por mais ou menos três horas, até que um grupo de Kenders nos emboscou a partir das sombras.

Ao ver que eram Kenders, e incapaz de acreditar que tais criaturas pudessem ser realmente malignas, gritei a todos que não os atacassem e que certamente poderíamos falar com eles. Alguns dos Kender pararam de facto, mas dos meus companheiros nem todos tiveram o mesmo bom senso. A Eruanne ainda parou, e acho que vi o Karol e o Aldor a evitarem também os pequenos bandidos, mas depois tudo descambou sem eu perceber bem como. Assisti impotente enquanto o meu grupo aniquilava os Kender até que eles finalmente fugiram. E quando finalmente já só sobrava um, pedi uma última vez que parassem. Nada feito, o Aprendiz esmagou-o na sua forma de ogre, que ele agora tem usado tantas vezes. Bruto desmiolado, é o que ele parece às vezes.

Depois deste combate, que me deixou tão amargurada, continuámos novamente em frente, até que vimos luzes na distância da noite. O Karol aproximou-se sorrateiramente, e nós apagámos as luzes. Ele voltou pouco depois dizendo que eram Cavaleiros Negros, que transportavam um deles numa liteira. Pareciam bastante feridos. É claro que o Aprendiz, mais uma vez, quis logo chaciná-los, e para minha vergonha, concordei com ele, dizendo que não tinha problemas morais em atacá-los. As minhas dúvidas estavam mais em saber como poderíamos fazê-lo sem nos pormos em risco. Mas demorámos muito tempo a montar um plano e os Cavaleiros afastaram-se.

Foi melhor assim, sem dúvida, ou teria feito algo de que me envergonharia depois. Matar sem provocação não faz parte das lições de Kiri-Jolith, como me explicou o Aldor à medida que continuámos viagem nessa noite. Devemos antes tentar perdoá-los e conduzi-los para o caminho da Luz, mesmo que sejam almas perdidas como os cavaleiros de Neraka... ou até o próprio Aprendiz. Mas o caminho da Cavalaria é assim mesmo, exige esforço e sacrifício, e sei que ainda tenho muito que aprender. É difícil para mim, ainda, ter este sentimento de compaixão, é sempre mais fácil destruir o que é diferente de nós, mas não é esse o caminho da Luz. Que Kiri-Jolith e Habbakuk me iluminem, e eu tentarei o mais possível seguir os seus ensinamentos.

Ainda estava eu perdida nestas reflexões, quando fomos de novo atacados. Noite movimentada esta, sem dúvida. Desta vez, quando já a aurora clareava o céu, foram dois javalis selvagens, enormes, que nos saíram ao caminho. Atacaram logo sem nos dar grande tempo de preparação, e também nesta altura, o melhor que há a fazer é responder igualmente. Trata-se de animais violentos, maldosos até, mas sem nenhuma alma que possa ser redimida. Nestes casos, matar é útil e acertado, e foi isso que fiz sem grandes problemas. Realmente, esta espada que Paladino me ofereceu tem sido uma aliada espantosa, e só espero ser digna dela.

Esta sessão começou uma nova secção da aventura. Se já tínhamos tido o

Dungeon Crawl em Hurin e a aventura urbana em Ak-Khurman e Port Balifor, a

Desolação foi essencialmente exploração em campo aberto, num ambiente hostil

e com mais monstros e encontros que o seu nome fazia prever. Em certa medida,

o estilo de jogo é semelhante ao que passámos nos desertos de Khur e de Sal,

mas muito mais extenso, e muito mais letal. Não é por acaso que quase todos os

combates que tivemos na desolação, e em particular depois de passarmos para

o segundo livro (ainda falta um pedaço para estes relatos lá chegarem) param num

ponto em que pelo menos um dos PCs chegou a negativos e os outros estão quase

todos rebentados. Curiosamente, ninguém morreu na desolação... ainda, mas

notou-se um grande salto no nível dos encontros para esta secção: monstros

maiores e dando mais dano.

Faz pensar que o sistema D&D não está bem preparado para este tipo de aventuras

pois assume que os PCs têm acesso a equipamento que faz subir as suas

protecções ao mesmo ritmo que sobe o dano, o que não é verdade num local tão

ermo quanto este. O equipamento que encontramos é pouco, muitas vezes não

serve e, de resto, não chega para todos. Pelo que nos encontramos com monstros

que batem com muito mais força, nós também o fazemos, mas a nossa AC

continua nos mesmos níveis, pelo que os encontros se tornam muito mais letais

e desequilibrados.