Dirtside: Episódio 4

E cá estamos nós num episódio que tinha tudo para partir a loiça toda. Era o spotlight da Raquel e, se ela já tinha sofrido tanto nos outros episódios, neste aqui só podíamos imaginar em que sarilhos a íamos meter. O início das hostilidades sofreu um pequeno adiamento devido à notícia do Paulo de que a série Desperate Housewives ia começar dali a minutos na SIC. Ora aí estava algo que toda a gente (okay, o Jota provavelmente não) estava em pulgas para ver depois de todos os elogios e bons comentários que nos iam chegando através da internet desde que a série estreara nos EUA. Além disso, é um exemplo perfeito de material para um série de PTA; só que em vez de ter como pano de fundo cenas de acção e aventura, tem um background de segredos escuros e mistérios por resolver. Mas, bem vistas as coisas, o truque continua a ser o mesmo: o mais importante são os personagens e os seus issues; o mistério do porquê do suicídio de Mary Anne(?) e do segredo escuro que o seu marido esconde são apenas “desculpas‿ para manter o ritmo e aplicar mais pressão sobre os personagens.

Essa era uma lição que eu devia ter mantido em mente. Depois de a sessão anterior ter resultado focada demais por excesso de preparação da minha parte, nesta aqui não planeei muito… e não planeei aquilo que devia ter planeado acima de tudo, aquilo que sempre custa mais a improvisar: a cena de abertura. Pois é, senti a falta e ter uma cena de abertura daquelas em grande, que dá o tom para o resto do episódio, e indica qual vai o ser problema/mistérios que o episódio vai ter como pano de fundo. Sem isto, as trocas e baldrocas dos personagens caíam um pouco no oco e não havia uma direcção estabelecida para a trama, sendo mais difícil de pensar em boas cenas.

Parte do problema foi que tínhamos uma cena quase obrigatória para resolver: o texto de ficção que a Raquel escreveu para resolver o cliffhanger do episódio anterior acabava com a personagem dela a receber um ultimato; tinha uma hora para tentar resolver os seus problemas como entendesse, caso contrário alguém os resolveria por ela, não necessariamente da maneira mais meiga. De modo que foi com a continuação dessa cena que abrimos o episódio, e depois disso não me ocorreu nenhuma cena apropriada para dar o mote ao episódio.

Foi um episódio bem bom, com os momentos de grande emoção a que já estamos habituados. Simplesmente faltou ali uma cola que ligasse aquilo tudo e criasse um todo ainda maior que a soma das partes. Bom, ao menos será um erro que não voltarei a cometer! É claro que também não ajudou termos começado tão tarde e termos de interromper o jogo a meio para jantar e ver a festa que os benfiquistas faziam por todo o país, mas pronto… :slight_smile:

Quanto a momentos interessantes do jogo… Bom, através do meu Next Week On da semana passada, em que aparecia o pai da Rita Jamieson (personagem da Raquel) lavado em lágrimas e a dizer à sua filha para ir chacinar rebeldes, toda a gente tirou a conclusão – muito certa – de que eu (ou alguém) ia matar o irmão querido da Rita, Francis. Como essa surpresa já estava estragada, não dei muito destaque à sua morte; aconteceu off-camera. Entretanto já me ocorreram várias maneiras de tornar esse evento interessante e potente, mas na altura não me ocorreu nada; ando com alguma falta de inspiração, que espero que volte rápido agora que já me despedi do meu emprego actual e que vou para outro menos cansativo e mais livre. De qualquer maneira, esta conversa só pretende chegar a um ponto: a reacção da Raquel.

Já se falou aqui em como PTA não é daqueles jogos que encoraja o jogador a “encarnar‿ o personagem; o principal contra é mesmo os jogadores terem regularmente de sair do interior do seu personagem para enquadrar uma cena ou oferecem sugestões aos outros participantes. Mas a verdade é que a Raquel e o Paulo tem lidado com essa dicotomia na perfeição: quando é para chamar cenas, reflectem sobre o grande esquema das coisas e têm ideias fascinantes; já quando as cenas começam e os seus personagens estão presentes, eles são o personagem. Às vezes parece que alternam entre os dois modos sem qualquer esforço, e enquanto o diabo esfrega um olho. É um óptimo sinal!

E falava eu na reacção da Raquel, que ficou visivelmente afectada e triste, por tempo significativo, ao serem dadas a Rita as notícias da morte do seu irmão. Ora o seu irmão é um NPC que só tinha surgido no episódio anterior em três ou quatro cenas. É uma capacidade de empatia fascinante conseguir sentir algo tão forte por algo do qual se conhece tão pouco!

Quando falo do Narrativismo, ou pelo menos de algo como cortar pela raiz a palha desnecessária à história (para quê fazer roleplay de três horas de interrogatórios em tavernas mal-cheirosas quando se pode começar o roleplay a partir do momento em que o PC entra na taberna certa, onde realmente se esconde a pista/pessoa que ele procura, e aproveitar as outras 2:45 para fazer mais mil coisas interessantes?), a principal objecção que me põem é que os personagens e os seus sentimentos ou relacionamentos são coisas que só se desenvolvem ao fim de muitas sessões, ou de dezenas de sessões, ou até de centenas de sessões. Eu simpatizo sempre com os seus pontos de vista, mas não sei se compreendem bem o meu, de que essa empatia por PCs e NPCs se pode desenvolver sem precisarmos de horas e horas e horas de tempo real de socialização.

É como dizer que não é possível ir ver o Titanic do James Cameron e sentir-se absorvido pelos personagens e pelas suas tragédias sem antes passar semanas e semanas e semanas a ler biografias extremamente completas (e também extremamente chatas) dos personagens e/ou assistir em tempo real, 24 sobre 24h, a todos os momentos que eles viveram abordo do navio. Milhões de adolescentes chorosas provam o contrário, se não acreditam na minha palavra… ou na do Paulo, que me convenceu a ir ver o filme ao cinema duas vezes, que é algo que eu só fiz… hmm… três vezes em toda a minha vida. O meu ponto é que quando estamos a ler um livro, ou a ver um filme, se a coisa for bem feita e se vocês forem como eu, é possível sentirmo-nos profundamente afectados pelo que acontece a um personagem que só conhecemos há 15 minutos/páginas atrás, ou até no início desta mesma cena.

Mas pronto, queria deixar não apenas a ideia de que é possível fazer isso como de facto é muito fácil. A Raquel e a sua personagem apaixonaram-se por dois(?) NPCs sem precisar de horas de roleplay social. Bastaram os gestos certos na altura certa. Se uma palavra mal-escolhida (“Christine‿, ver final do Episódio 2 de Dirtside) pode quase deitar abaixo uma relação, um gesto simples (Daniel Fishburne a oferecer café a Rita Jamieson, Episódio Piloto) pode começar outra. O Paulo, cujo personagem só vivia para a vingar da sua família, foi capaz de simpatizar tanto com um NPC que nem sequer existia antes dessa sessão ao ponto de o perdoar por lhe ter morto a mulher e filhos (Episódio 3). Finalmente o caso que estava a discutir, da Raquel e da morte do irmão de Rita.

Não quero com isto dizer que esta seja a única ou a melhor maneira, apenas que é uma maneira igualmente válida e igualmente potente/intensa. Simplesmente eu, sendo um tipo preguiçoso e fácil de se aborrecer, sou mais adepto desta política do Fast&Furious, ou o que às vezes chamo da “terra queimada‿, que é pegar em setting, PCs e NPCs e dar-lhes todas as voltas possíveis no espaço de tempo mais curto possível até que não reste sobre pedra sobre pedra nem nenhuma hipótese por explorar. A este ritmo, duvido que haja uma segunda temporada de Dirtside, eheh; nessa altura já vou ter esgotado todas as possibilidades destes personagens, nesta situação, neste pedaço de setting. Teríamos, provavelmente, de transformar as personagens e faze-las crescer, e depois transportá-las para outra situação.

Mais eventos interessantes… novamente a Rita e a Raquel, ou não fosse este o seu spotlight. Não foi um bang particularmente intenso, mas foi um que revelou muito da personalidade “escondida‿ de Rita Jamieson. Fiz aparecer no jogo provas novas em relação ao screw-up que ela tinha feito na academia militar, provas que a ilibavam de culpas e que eliminavam do seu currículo aquela enorme mancha que a tinha impedido de se tornar uma oficial. Feito isso, um pequeno gostinho do sucesso: promoção a Alferes, o respeito do pai, etc. Então deixei cair a bomba: as provas tinham sido falsificadas pelo seu irmão Francis, que vira o estado triste em que ela ainda estava anos depois do acontecimento. Pelo menos duas hipóteses tinha Rita/Raquel: parar o processo de re-avaliação do seu caso e deixar a coisa como estava, ou calar-se e deixar que as provas falsas a ilibassem do acidente que causara a morte a uma das suas camaradas de armas.

A decisão estava completamente em aberto. Se Rita era uma mocinha inocente e meio sonsa que muitas vezes tentava fazer a coisa certa, por outro lado era alguém que no dia-a-dia vivia com subterfúgios e mentiras, fruto de estar num relacionamento amoroso com alguém que ela sabia ser um traidor a tudo o que ela, o seu pai, o exército e a Federação defendiam. Que expectativa! E a verdade é que Rita/Raquel optou por se manter quietinha e calada enquanto o processo seguia o seu curso, recebendo de braços abertos os louros que não merecia e deixando que a pessoa que tinha morrido por sua causa ser vista como uma incompetente que causara a sua própria morte.

Gosto muito da Raquel como jogadora. As personagens dela são muito inocentes, tal como ela, mas quando ninguém espera são mesmo assim, capazes das maiores barbaridades. Lembro-me de uma personagem de Kult dela que matara a sangue-frio o seu rival desonesto na editora discográfica onde os dois trabalhavam. Mas lembro-me sobretudo de, num jogo recente de Sorcerer, ela ter empurrado a sua rival numa audição para um trabalho com um artista de renome mundial por um poço de elevador abaixo (o demónio fez o favor de tirar o elevador do caminho, mas foi a Raquel quem deu o empurrão sem que ninguém a tenha forçado ou obrigado). Agora, novamente, ela mente e falsifica para progredir mais rapidamente na carreira. Hmm… será que há aqui um padrão? Só sei que se fosse patrão da Raquel lhe dava logo o meu lugar e pirava-me daquele emprego enquanto ainda estava vivo, eheh. Amigos, tudo aquilo que aprenderam sobre mulheres a ver o Duarte & Cia na vossa juventude, é real; os argumentistas daquilo sabiam do que falavam! :wink:

Bom, houve mais momentos porreiros com a Rita, mas também com outros personagens (o discurso que o Paulo fez aos rebeldes alegando não estar a traí-los quase o convenceu a si próprio!), mas não vou entrar em mais detalhes que isto já vai longo. Agora só nos falta o último episódio de Dirtside, que vai encerrar esta temporada com um Big Bang bem literal, espera-se. No próximo Domingo, a Federação cai!

[color=blue][i]Come and see him dying for it’s really quite a show, Walking on the wire though he never seems to know, Even when he’s falling you can see a little smile, Figures that he's flying only for a little while. The ground is rushing towards him but he never sees it there, Lives his life in pieces, always taking every dare. What could be the ending? Well, I’m sure that I don’t know. The ground is getting closer, come and see the show! See the show! --[b]Savatage[/b], Surrender[/i][/color]

Desperate Housewives está muito bom. Divertido, inteligente, viciante, mostra realmente um bom exemplo do que uma sessão de PtA deve ser. Sem haver grande espetacularidade consegue-se ficar agarrado à história e personagens, pois estão bem delineadas e as interacções vão do intenso ao hilariante.

Ando a fazer pesquisa, aliciar gente, e a imaginar coisas para ver se finalmente faço algo de PtA, e devo admitir que estas tuas descrições estão a ajudar muito. Obrigado por frisares bem a importância da cena de abertura, porque começava a pensar que com um pouco de improvisação se ia ao sitio. Parece que realmente tenho de queimar alguns neurónios para as sessões serem o melhor possível.

Julgo que para uma personagem ser memorável não precisa que as pessoas saibam muita coisa dela. Desde que seja alguém com quem os jogadores/leitores/espectadores se identifiquem ou simpatizem, está a andar. Há muitos exemplos em que a personagem misteriosa duma história é mais popular que todas as outras. Se se narrar uma personagem da maneira certa, passa a haver uma empatia maior para com ela. Surpreendente é não haver qualquer intuito de tornar uma personagem ‘amada’ por todos e ela o ser. Aí é como se ela ganhasse vida própria.

Força com Dirtside, já nos deixaste agarrados e de pipocas na mão à espera do próximo episódio! Bom jogo!

Oi Joaquim! Muito obrigado pelos comentários! Desculpa a demora na resposta; não respondi logo na altura, que é como deve ser, e depois andei para aqui perdido em upgrades e updates e up-outros ao site. Não te esqueças de nos ir mantendo informados sobre os teus projectos!

A coisa com improvisação vai ao sítio. Simplesmente eu tenho sempre extrema dificuldade em improvisar uma cena de abertura, e os jogadores também nunca ajudam muito com essa parte. Sabes como é: o mais difícil é começar, eheh, o resto depois é daí (e do material que está nas folhas de personagem e nas notas sobre o setting) que flui. De modo que vir para o jogo já com uma cena de abertura na cabeça ajuda-me bastante, mas não quer dizer que outros Produtores não se safem às mil maravilhas sem isso.

Mas pronto, vale sempre a pena queimar alguns neurónios a pensar em bangs para atirar à cara dos jogadores se e quando surgir a oportunidade! :slight_smile:

É mesmo isso. A Raquel ainda está a tentar perceber como é que a Nemesis da personagem dela, que passava a vida a humilhá-la, se tornou num interesse romântico tão forte. Eu também estaria a tentar perceber, mas já desisti… o amor é mesmo cego e zarolho! :slight_smile:

E pronto, o comentário ao último episódio também já está online. Coloquei mesmo agora um resumo dos pontos altos que me mais chamaram a atenção. Abraços!


“You can choose just who you are.”