Dos Pasteis à Prática: RPGs e Imersão

[quote=Verbus]Este nível de envolvência, quer com a personagem que estou a jogar/representar/"ser", quer com o universo imaginário onde ela evolui, é o que eu procuro quando jogo RPG. É uma experiência quase mística, evidentemente mágica, e mais possível e atingível do que possa parecer à primeira vista. Isso requer uma envolvencia muito grande entre o jogador e a sua personagem, e com o seu universo. Não sei se será possível se o jogador tiver também funções de "criação" para além da vivência da sua personagem[/quote]

Esta é sempre uma discussão interessante. Eu costumo falar de imersão (ou de actor's stance) quando se trata dessa envolvência com o personagem que o Verbus aqui explica. Julgo que a questão que se levanta é se ela é, de facto, afectada por o jogador - em determinados RPGs - assumir outras funções (eu chamo-lhe posturas) que não só a vivência da sua personagem.

Na minha opinião, é perfeitamente possível fazer imersão e também desempenhar outras funções durante o jogo, mas é mais difícil do que simplesmente permanecer in-character do início ao fim da sessão.

Reconheço que alguns dirão que não é "mais difícil", que é mesmo inexistente. Dirão também que esses jogos já não podem sequer ser considerados RPGs. Eu discordo, pois acho que a imersão existe em ambos os casos, apenas é enquadrada de maneira diferente.

No caso em que as regras atribuiem ao jogador apenas a função in-character, ele estará dentro de personagem durante a maior parte do tempo em sessão. Na minha opinião, essa imersão quase contínua levará a cenas das quais o jogador gosta bastante, mas também haverá cenas das quais ele gosta menos, ou seja, situações que não lhe são tão apelativas, por ele não ter tido - dentro das regras - oportunidade para contribuir na criação delas.

No caso em que as regras atribuiem ao jogador outras funções para além de permanecer in-character, ele poderá chegar a estar dentro de personagem apenas durante uma pequena parte da sessão. Na minha opinião, esse dispersar da atenção e concentração do jogador torna a sessão mais difícil para ele, mas talvez essa dificuldade possa ser ultrapassada com a ajuda dos outros jogadores. Dessa forma, o jogador dispõem de menos tempo para estar dentro de personagem, mas, por outro lado, já tem a possibilidade de contribuir na criação das situações que mais lhe interessam jogar e, nessas cenas, onde faz imersão, ela será tendencialmente mais satisfatória.

Eu diria que, em geral, a intenção por parte dos RPGs que atribuem maior variedade de funções aos jogadores é fazer com que a imersão - apesar de ocupar menos tempo de sessão - seja melhor, ou seja, que vá mais ao encontro daquilo com que o jogador se diverte. Claro que também se corre o risco de reduzir tanto o seu tempo de sessão que essa eventual melhoria na qualidade da imersão se perde.

Como podemos ver neste gráfico, no ponto A temos um maior tempo de imersão, mas presume-se que haverão algumas cenas menos satisfatórias para o jogador, por ele não ter podido ajudar a fazê-las. No ponto B, temos bastante menos tempo de imersão, pelo que, mesmo que o jogador tenha tido muito espaço para ajudar a criar várias cenas espetaculares para roleplayar, elas foram simplesmente poucas.

Chegar ao ponto X - o ponto de equilíbrio - é, na minha opinião, um objectivo válido para qualquer RPG, pois admite que, por um lado, pode se perfeitamente dar mais poderes ao jogador para o ajudar a melhorar a sua própria imersão e, por outro, que não se pode gastar assim tanto tempo de sessão que practicamente o jogador não chegue a estar dentro de personagem.

Regressando à questão inicial, eu diria que, quando as regras atribuem ao jogador uma maior variedade de posturas, certamente que a imersão é afectada e torna-se diferente no caso A, B ou X, mas não é por isso que deixa de existir. Na minha opinião, é uma questão de ter em conta um possível equilíbrio entre quantidade e qualidade - um equilíbrio entre estar como personagem e ajudar directamente na sessão.

Entretanto, chamo à atenção que não estou a falar daqui do que é que um grupo pode ou não fazer para promover uma boa comunicação, troca de ideias ou para incorporar as muitas sugestões que todos certamente fazem durante as sessões. Certamente que um bom grupo consegue jogar qualquer coisa com quaisquer regras. Certamente que com um mestre-jogo excelente que lê a mente dos seus jogadores nem é preciso sair de imersão. Agora, neste tópico, estou a referir-me à imersão do ponto de vista das regras, ou seja, dos RPGs que são escritos. Acho que esta perspectiva é a mais útil.

Concordo perfeitamente! Mas como atingir esse equilíbrio, na perspectiva do jogador em si, dos jogadores em grupo e até do designer de RPG?

O jogador em si conseguirá apreender esse equilíbrio só depois de experimentar todas variações? É algo que deve ser contemplado à partida e discutido entre jogadores antes de se jogar? Deverá ser um objectivo do designer durante a produção do jogo? Poderá ser este ponto de equilíbrio ser bem definido no documento de jogo?..

E porque raio só faço perguntas? :slight_smile:

"Se alguma vez sou coerente, é apenas como incoerência saída da incoerência." Fernando Pessoa

[quote=jrmariano]Mas como atingir esse equilíbrio, na perspectiva do jogador em si, dos jogadores em grupo e até do designer de RPG?[/quote]Não abordei ainda a questão pela perspectiva do jogador ou do grupo, mas um exemplo de um possível design com este equilíbrio em mente é o belo Inspectres do Jared Sorensen. O input dos jogadores está logo integrado na simples mecãnica de resolução, mas o mestre-jogo também está sempre presente.

(ps- antes de comentar isto fui ler o outro post em que o Rick Danger falava de posturas.)

 

Olha, acho que esse gráfico é bonitinho mas desnecessário :), sobretudo porque o ponto X é totalmente relativo. Ou seja, para cada jogador será diferente. O grupo que está a jogar vai produzir um determinado grau de imersão e é do somatório de todas essas características que a sessão vai ser qualificada. No entanto, cada jogador é que sabe (e acaba por decidir) qual o grau de imersão que vai empregar no seu jogo. Logo, o gráfico e o conceito nele inerente é algo que é mais coincidente com uma auto-avaliação e não com a avaliação da sessão em si.

Depois, em relação às posturas, discordo em absoluto que devam existir ou ser definidas em singular. Aquilo não são "Posturas", são apenas dimensões de roleplay. Encarnar uma personagem engloba imensos aspectos, esses aspectos vão desde o comportamente quotidiano do personagem até ao passado profundo do mesmo, passando pelo enquadramento histórico e sociológico de onde provém. Encarnar um homem da época Vitoriana, por exemplo, ou um cidadão do império romano, envolve conhecer a sociedade que originou esse mesmo homem. Assim como tal, as "posturas" que referes são PARTES daquilo que é necessário fazer para se desenrolar um roleplay de qualidade, profundo e completo.

Logo, nenhum jogador pode almejar fazer um roleplay excelente se não tiver em consideração todos esses aspectos.

Faria talvez uma única excepção, no que se refere à:

Director Stance - The person playing a character determines aspects of the environment relative to the character in some fashion, entirely separately from the character's knowledge or ability to influence events. Therefore the player has not only determined the character's actions, but the context, timing, and spatial circumstances of those actions, or even features of the world separate from the characters. Director Stance is often confused with narration of an in-game event, but the two concepts are not necessarily related.

Nesta "postura" há um certo tipo de manipulação que não é obrigatória estar presente no momento, para se poder fazer um roleplay perfeito. No entanto, na criação de backgrounds (que eu prefiro que sejam maleáveis e nunca completamente estanques a ligeiras alterações ou adições), esta postura está sempre presente.

Jogos que proíbam, por completo, qualquer uma dessas "posturas", são jogos que CASTRAM as potencialidades de fazer roleplay. E nisso sou muito detestado, porque digo sempre que os sistemas de jogo foram feitos para serem alterados (ou ignorados) quando são obviamente castradores. :P

Não me interpretes mal, eu acho os teus dois posts extremamente interessantes e a profundidade com que pensas e analisas o roleplay revelam uma paixão enorme e uma capacidade de avaliação fantásticas. Mas não concordo com a cena das posturas como independentes; são como almas gémeas, necessitam da companhia umas das outras para se tornarem um ser uno e perfeito. :P

Há que distinguir aqui duas questões, a lógica dos rpgs e a prática. De um ponto de vista lógico eu sou dos que pensa que um rpg para ser rpg precisa de duas funções, a função MJ e a função jogador.

Na prática, porém, estas duas funções podem ser atribuídas a jogadores diferentes, ao mesmo jogador, alternada ou simultaneamente. Normalmente e de acordo com as próprias origens do óbi há um participante que desempenha integralmente (ou na maior medida) a função MJ e um número variável de outros participantes que desempenham a função jogador. Porém nada obriga a que isto funcione assim e são possíveis outras configurações. Isso não é de todo uma novidade e desde muito cedo, tanto quanto sei, que se iniciaram experiências de MJs múltiplos ou de reafectação de funções dentro de uma mesma sessão de jogo. Mesmo em termos de jogos comerciais, basta pensar no «velhinho» Prince Valiant.

O problema que eu tenho com certas teorizações é que tendem a desfazer a lógica dos rpgs ao confundirem as funções não ao nível da prática de jogo mas ao seu nível conceptual. Se se elimina a diferenciação lógica entre MJ e jogador, se a construção da personagem e construção do mundo são um mesmo acto (e vice-versa), então passamos de facto ao story making, à construção de histórias. Isto é obviamente possível mas não é já roleplaying pois , das duas uma: Ou o participante passa a ser um construtor/narrador de histórias e deixa de encarnar a personagem; ou encarna a personagem mas numa posição de Deus Ex Machina. Em ambos os casos desaparece o confronto entre indivíduo e o meio necessário à construção/vivência de uma personagem.

Na prática o story making (o teu ponto B) até pode ser muito interessante mas não é roleplaying; quanto ao Deus Ex Machina parece-me que dificilmente poderá ser interessante pois, como tudo na vida, onde não há fronteiras não há incentivos.

Se te percebi em estás a falar de design que incentiva ou facilita a imersão?

A ser verdade este meu pressuposto vou enumerar uns quantos jogos e a maneira com eu acho que se relacionam com isso.

Mortal Coil - Tem um conceito teoricamente giro onde os jogadores podem criar factos do jogo que depois podem ser usados mecanicamente. Quando tentei jogar isto na Semana dos RPGs correu muito mal, isto porque sempre que alguém queria por um facto novo em jogo passávamos imenso tempo a discuti-lo e as suas implicações, fazendo o jogo perder muito do interesse para os participantes.

Dogs In The Vineyard - Para é para mim o jogo que mais me faz "imergir" no personagem, isto advém da mecânica de escalgem de conflitos, que me permite perceber até onde é que aquele personagem está disposto a ir (embora ainda haja aqui uma boa dose de Autho Stance).

Principalmente brilhante é a maneira como as skills são tratadas, tanto na maneira como são colocadas em jogo num conflito (através das descrições do jogador), que me permitem Ver aquele personagem em jogo, relacionando assim as mecânicas do jogo com os eventos in-game de uma maneira directa, clara e completamente Lá. Como através da aquisição de novas skills e as variações no seu valor, que permitem eu ter à minha frente um personagem em constante aprendizagem e evolução à medida que é posto à prova perante várias provações.

Mage, The Awakening - O que gosto particularmente neste jogo é o sistema de magia (para mim o melhor que vi até hoje, com a ressalva que vi muito poucos hehe), que quando bem trabalhado e engatado pelo grupo todo - um consenso muito pouco trivial devido à natureza bastante "solta" (?) da mecânica - me consegue envolver naquele mundo estranho, caótico e altamente personalizado dos magos. Aqui estou a falar de imersão no setting do jogo e não propriamente num personagem, não sei se é um assunto que também queres abordar.

Argh, re-li o que escrevi e reparei que isto tem "poesia" a mais e pouco sumo, se quiseres que desenvolva mais algum destes pontos ou exemplos avisa que eu faço-o de grande prazer, agora estou todo roto hehe.

"the drunks of the Red-Piss Legion refuse to be vanquished"

Smascrns: eu concordo com tudo o que disseste, sobremaneira relativamente à necessidade da função de um MJ para que as coisas funcionem na perfeição. Concordo com TUDO, sem excepção até ao último parágrafo, mas parece que continuas a achar que o que escrevo não é coincidente com as tuas posições. Parece-me que só ao vivo, utilizando exemplos concretos, é que será possível resolver estes mal-entendidos. Portanto escuso-me a falar mais do assunto, deixando um simples "concordo".

Quanto ao último parágrafo, acho que estás errado. Estás errado em ver aquilo que descrevo quanto à colaboração para a criação de uma estória como um género de "storymaking" independente do que é o roleplay. Mais uma vez, provavelmente só com exemplos directos é que seria possível confirmar divergências ou coinvergências entre as nossas opiniões. A net tem certas limitações, e há aqui uma barreira da linguagem ou outra que está a dificultar a conversa. Sinceramente, pressinto que as nossas posições são muito próximas, mas continuamos a debater isto. Se calhar há definições pré-feitas que estás a utilizar (e eu tb) que se tornam um empeçilho na compreensão de uma opinião nova.

Prefiro adiar a conclusão deste debate para algum momento ao vivo, quer seja um meet de roleplayers ou uma sessão de D&D, para a qual te voluntariaste há algum tempo atrás e em que poderás observar ao vivo a minha forma de "Mestrar".

Até breve!

 

RedPissLegion: estou muito cansado hoje, comentarei os teus exemplos e análises amanhã. Sorry.

Na verdade a ideia (pelo menos a ideia onde o Rick se inspirou) é mais ou menos essa, acho que estás lá. Chamam-se posturas por causa das “posturas” das artes marciais, aquela meia-dúzia ou assim posições base do corpo de onde nasce tudo o resto, e ao longo das quais o corpo se move com fluidez enquanto executa ataques, defesas e movimentos… ou seja, o jogador vai-se movendo por elas enquanto joga, sem sequer pensar nisso… mas claro continua a poder dizer-se que certas pessoas ou certos jogos preferem ir mais para aqui ou ali, e coisas assim. Se fosse tudo um todo indivisível não servia para nada em termos de estudo/observação/o que for.

[quote=ricmadeira]Chamam-se posturas por causa das "posturas" das artes marciais, aquela meia-dúzia ou assim posições base do corpo de onde nasce tudo o resto, e ao longo das quais o corpo se move com fluidez enquanto executa ataques, defesas e movimentos... ou seja, o jogador vai-se movendo por elas enquanto joga, sem sequer pensar nisso... mas claro continua a poder dizer-se que certas pessoas ou certos jogos preferem ir mais para aqui ou ali, e coisas assim. Se fosse tudo um todo indivisível não servia para nada em termos de estudo/observação/o que for.[/quote]Obrigado, ric, era exactamente o que eu ia responder :)
Julgo que estamos todos de acordo (tu, eu e o JB_Mael) em relação à flexibilidade das posturas. Aliás, no respectivo artigo eu explico que:

[quote]Esta separação por posturas não pretende indicar que alguém jogue sempre da mesma maneira, pelo contrário. Todas as posturas são igualmente válidas. Teoricamente, um jogador pode, ao longo da mesma sessão, assumir cada uma destas atitudes nos momentos que achar apropriados, de forma a maximizar o seu divertimento e o do grupo.[/quote]

Assim sendo, na minha opinião, a figura do mestre-jogo tradicional é justamente alguém que se move fluidamente de postura em postura durante a sessão. Faz de director para descrever a cena, muda para actor/autor para interpretar um NPC importante, passa por peão para controlar as acções de personagens menores, etc, etc, etc.

Em relação ás funções do jogador - que é o assunto deste artigo sobre RPGs e Imersão - também considero que existe vantagem em não permanecer numa postura de actor (actor's stance) do início ao fim da sessão, pelos motivos explicados acima.

Deste modo, penso que o conceito de mestre-jogo e de jogador são apenas abstracções usadas para explicar as regras mais facilmente. Na verdade, todos os tipos de participantes têem, teoricamente, acesso ás mesmas posturas. As regras de cada RPG é que depois atribuiem (com nomes como Game Master ou Storyteller) funções prioritárias a uns ou a outros.

"Quanto ao último parágrafo, acho que estás errado. Estás errado em ver aquilo que descrevo quanto à colaboração para a criação de uma estória como um género de "storymaking" independente do que é o roleplay. Mais uma vez, provavelmente só com exemplos directos é que seria possível confirmar divergências ou coinvergências entre as nossas opiniões."

Dizer que storymaking é diferente do roleplay não significa que sejam incompatíveis, eles podem coexistir num mesmo jogo. Uma das características interessantes do roleplay enquanto actividade lúdica é que pode (e até exige em certos casos) incorporar outras actividades lúdicas independentes dele. Por exemplo o wargaming. Ou os jogos e puzzles lógicos, tão comuns há 20 e tal anos. Quanto aos exemplos, seguramente que os vamos experimentar no futuro.