E encontram-se todos numa estalagem

Em fantasia, a estalagem sempre foi usada como ponto de partida para toda uma série de campanhas e aventuras. Tem toda a lógica. É um ponto de encontro de viajantes e locais e, historicamente, um local onde se podiam conhecer as novidades de locais longínquos e seres estranhos. Do ponto de vista de RPGs, é um local onde facilmente se arranja uma desculpa para as personagens visitarem e se congregarem com outros do mesmo género (aventureiros) e, embora seja um cliché, é um cliché que resulta. E em wuxia? Que razões lógicas poderemos inventar para reunir um grupo de personagens e enviá-las em aventuras?

À partida teremos que ter um grupo, criado e pensado como um grupo e não um grupo díspar de personagens que se encontre durante as aventuras. Esta segunda é viável mas não é o que me interessa para esta discussão. O que me interessa são pontos de partida onde o grupo tenha, à partida, uma razão lógica e inegável para se envolverem nas aventuras do GM e seja racionalizado o porquê da existência do grupo que não a razão mais óbvia: "porque somos PCs e porque o GM espera que nos envolvamos nas aventuras."

Em baixo apresento uma breve lista de potenciais pontos de partida para uma aventura/campanha. Não incluo as mais óbvias que podem ser usadas em qualquer campanha (as personagens são da mesma família, as personagens vivem na mesma localidade, etc.) Todas, excepto a primeira, têm em comum o seguinte: os PCs têm um elemento comum que os aglutina como grupo, uma razão inegável para se envolverem nas aventuras do GM.

A ESTALAGEM

Sim, a estalagem pode ser usada como método de introdução de personagens. Quer o setting seja real ou inventado (como no caso de Swords of the Middle Kingdom), as estalagens existem e, na China real, eram pontos de passagem de viajantes entre os vários reinos (pré-unificação) e as várias províncias (pós-unificação). Aí podiam encontrar-se pessoas de todas as classes, incluíndo guerreiros dos mundos das artes marciais. É um ponto lógico para alguém procurar alguém para resolver um ou outro problema a troco de dinheiro. Sim, os guerreiros de artes marciais podem ser recrutados ou contratados. Afinal de contas, todos precisam de dinheiro para comer e um tecto para dormir. No entanto, em wuxia, a estalagem é o menos característico de todos os meios para juntar um grupo e o enviar em aventuras. Além de que, sendo bastante usado em fantasia ocidental, já está um bocado desgastado como cliché. De todas as opções é a mais fraca porque, muitas vezes, só estar no mesmo local que os restantes não é, por si, uma razão forte. Haverá sempre alguém que POSSA OU NÃO racionalizar que não tem lógica juntar-se ao grupo só porque está ali na hora certa.

SHIFU! SHIFU!

Este é um bom método de apresentar as personagens umas às outras, com a mais valia de que, sendo todos estudantes do mesmo mestre podem criar um background em conjunto e começar a campanha com uma ligação emocional. Para além disso, as personagens já podem ter treinado durante anos sob a tutela do shifu o que acentua ainda mais esta ligação. A partir daqui o grupo (incluindo o GM) tem a liberdade para motivar o grupo a partir em aventuras como bem entender. Alguns exemplos incluem:

  • O shifu foi misteriosamente morto por alguém e cabe às personagens descobrir.
  • O treino das personagens está quase completado mas para acederem às técnicas de kung-fu mais elevadas, as personagens devem enveredar por uma série de testes criados pelo shifu. Alternativamente, o shifu pode ordenar às personagens que partam e conheçam o mundo e regressem quando estiverem preparados (ou seja, quando tiverem os skills necessários para treinar o kung-fu)
  • O shifu revela-se uma personagem maléfica, chefe de uma seita, etc. As histórias wuxia estão recheadas de exemplos em que o arqui-vilão dos heróis é o próprio shifu.

O que interessa aqui é que o shifu é o catalizador e a personagem comum ao grupo e um motivador das aventuras.

CLÃ DE ARTES MARCIAIS

O Mundo das Artes Marciais está repleto de clãs. Os chineses gostavam de inventar clãs para tudo e mais alguma coisa desde o Clã dos Vagabundos ao Clã da Flor Celestial. Em termos de cultura chinesa, o clã representa a família, na medida em que os membros do clã são "irmãos", os superiores serão os pais, tios, etc. Isto é importante, porque na China, a família tem um papel primordial nas relações. Assim, se todo o grupo pertencer ao mesmo clã, sentirão uma responsabilidade acrescida de entre-ajuda. Os membros do grupo são os seus "irmãos" e os líderes do clã devem ser obedecidos. Dado que o potencial para intrigas é quase infinito, o GM tem à sua toda uma série de maneiras de motivar o grupo a funcionar como um grupo e a partir em aventuras. Alguns exemplos.

  • Guerra de clãs por causa de um manual de artes marciais.
  • Os clãs unem-se para lutar contra um clã maléfico.
  • Alguém quer matar o líder do clã (ou matam-no mesmo) e cabe às personagens resolver o assunto.
  • Uma luta de poder dentro do próprio clã que obrigue as personagens a tomar partidos (embora aqui exista o risco de cada personagem optar por um lado diferente do conflicto).
  • A supremacia dos clãs no Mundo das Artes Marciais.

TORNEIO DE ARTES MARCIAIS

Um cliché de wuxia e da cultura Chinesa. Alguém organiza um torneio de artes marciais onde todos podem participar. As personagens também comparecem. Porquê? Porque para além do primeiro prémio poder ser algo de valioso (uma manual de artes marciais, por exemplo), os torneios também são um excelente local para criar amizades, contactos e saber as últimas novidades do Mundo das Artes Marciais que, no fundo, é uma comunidade como outra qualquer. O GM tem a vida facilitada porque os participantes podem ser divididos em grupos (todas as personagens no mesmo grupo vs. NPCs), permitindo aos jogadores criar uma ligação durante a aventura. O prémio final do torneio pode ser o objectivo da aventura ou, como é sempre o caso, podem ocorrer outros eventos, desde alguém que é envenenado durante o torneio, intrigas políticas, encontros e desencontos, etc. O torneio pode decorrer num palácio ou outro local apropriado, no qual as personagens são forçadas a permanecer durante o período do torneio. Isto permite evitar que as personagens deambulem para pontos que não interessam. É railroad? De certa maneira, mas resulta.

IRMÃOS DE SANGUE

Este conceito permite toda uma série de situações que poderiam não ser aceitáveis noutro contexto. Irmãos de Sangue tem bastante peso na cultura Chinesa. Uma pessoa está disposta a sacrificar-se pelos seus irmãos de sangue e a sua lealdade para com eles é permanente e inquebrável. Como surgem os irmãos de sangue em wuxia? Qualquer situação servirá. Na minha campanha, as personagens encontraram-se por acaso e juraram ser irmãos de sangue. A partir daí, não é preciso racionalizar mais o porquê de acompanhar aquele grupo de estranhos em aventuras. Acompanham-se porque são irmãos de sangue. Na novela Tian Long Ba Bu, de Jinyong, o líder do Clã dos Vagabundos torna-se irmão de sangue do Príncipe de Dali quando os dois se encontram por acaso numa, sim adivinharam, estalagem e desafiam-se para ver quem bebe mais e quando o Príncipe ganha (usando uma técnica de arte marcial que lhe permite não ficar bêbedo), o líder do Clã jura ser seu irmão de sangue. Como vêem, não é preciso uma grande racionalização. São irmãos de sangue, porque sim.

O melhor de tudo é que o GM pode misturar todos estes elementos à sua vontade. Um grupo de heróis do mesmo clã que participam num torneio de artes marciais de clãs, ou todas as personagens têm o mesmo shifu que se vê envolvido numa luta entre clãs. Ou as personagens estão todas na mesma estalagem e são atacadas por clãs e aparece um estranho misterior que as salva e torna-se seu shifu. De certeza que há outros métodos de que vocês se lembrarão. Se assim for, escrevam-nos aqui.

CASAMENTO!
Uma grande cerimónia de família leva as personagens a uma enorme festa cheia de personagens novas e primos distantes. É uma excelente ocasião para intriga política, acontecimentos auspiciosos, eventos misteriosos e competições de culinária! :slight_smile: Já agora, a qualquer momento a noiva/noivo pode ser raptada(o) e o grupo dos jogadores reúne-se em perseguição dos malfeitores.

Neste caso, o grupo de personagens teria que ter uma razão para estarem todos juntos. O casamento só por si não é suficiente. Casamentos há em todos os roleplays e muitas das vezes as personagens juntam-se porque sim, porque são os heróis da história e é assim que deve ser. Mas para haver uma razão lógica para estarem todos juntos deverá haver uma razão de força maior.

Repara que não invalido que as personagens se juntem sem outra razão que não seja "somos todos os heróis principais da história e se não formos em grupo resolver o problema, não há campanha." Mas o que me interessa são motivações no contexto wuxia e que sejam suficientemente abstractas para se adaptarem à maioria dos grupos.

E quem diz casamento, diz festa de anos. O filme Tigre de Jade começa com a festa de anos de um líder de um clã que é assassinado e o filho (ligação) vai investigar. Adaptando, as personagens do clã poderia ir investigar mesmo que não fossem da família de sangue, porque o clã em si é a "família" e a morte do líder como se fosse a morte de um pai. O filme Clãs Assassinos também começa com uma festa de anos, se não me engano.

A reter é que os PCs têm que sentir uma motivação inegável para partirem em aventuras. Uma motivação que não seja só porque são PCs e sem eles a campanha não anda.


"You think I'm old and feeble, do you? Well, face my Flying Windmill Kick, asshole!"

Junta a festa de anos ao casamento, e aos clãs marciais. Pões uma festa de anos ou de um chefe de clã, ou de um membro de um clã velho e respeitado no Jiang Hu (mundo marcial, mas principalmente o submundo fora da estrutura da sociedade chinesa) - raramente se vê nos filmes/romances/séries ser ocasião de celebração uma idade inferior aos 50 anos. Junta-lhe que se vai anunciar o noivado dos filhos\netos, de família ou de clã. Depois, há o factor Bela Adormecida - o clã/artista marcial/(ou porque não o) bruxo maléfico e extremamente poderoso que não foi convidado e que aparece.

O potencial para aventuras, acção e emoção ao estilo wuxia nunca mais acaba. Se os pcs tiverem npcs com que se relacioneme têm importância, estes estarão envolvidos até ao pescoço nas intrigas que se geram nesta ocasião. Uma situação frequente é a do herói que não se quer envolver nas intrigas e no derramar de sangue do Jiang Hu, mas é arrastado pelas suas relações e pelos seus princípios.

A reputação, a dignidade e o bom nome, que em chinês de pode condensar no termo"face", são só a coisa mais importante para estas personagens do Mundo Marcial. Há mesmo vilões que fazem o possível por comprir pelo menos a letra da palavra dada, e às vezes até o espírito. Qualquer coisa que ponha a "face" dos PCs OU DOS SEUS em perigo é um motivador para a acção. Para muitos a "face" é mais importante que a vida. Assim, pode ser originador da acção algo tão simples como a existência de um rumor sobre alguém, e toda uma aventura pode estar em descobrir-lhe a origem e resolvê-lo - ou duelar todos os que acreditam e silenciá-los, através da palavra dada ou "permanentemente".

Verbus

"Are you going to pull those pistols, or just whistle Dixie?"

Concordo com tudo o que vocês dizem, mas o que interessa para aqui é como criar um grupo ao estilo do "encontram-se todos numa estalagem..." mas num contexto wuxia. Certo que qualquer situação serve, mas o ponto de partida é: o grupo inteiro tem que, à partida, ter uma motivação lógica para ir em aventuras. Dito isto, qualquer das situações acima são viáveis mas o casamento/aniversário insere-se no meu primeiro post, na secção Clãs, ou seja, ajuda muito mais se as personagens forem criadas como pertencendo a um clã que esteja envolvido nesse casamento/aniversário. Como convidados de fora cria um problema muito maior para o GM para tentar criar uma razão lógica para a dita personagem ir em aventuras. Nem todos os do Jiang Hu ou Wulin estão dispostos a ajudar um clã só porque acontece alguma coisa no aniversário. Aqui, a razão tem que ser de tal maneira inegável que o próprio jogador se lembre de embirrar que não quer ir na aventura.


"You think I'm old and feeble, do you? Well, face my Flying Windmill Kick, asshole!"

O grupo é criado como pertencendo a um bando de foras-da-lei, mas aqui o contexto é diferente. Como Wuxia, as personagens lutam contra um governo corrupto ou um magistrado corrupto (à semelhança do Robin dos Bosques), defendo os ideais de honra, justiça, honestidade. A China tem uma história com imenso potencial. O percursor deste estilo de aventuras, e mesmo de novelas wuxia, pode considerar-se Water Margin, sobre um grupo de foras-de-lei durante a Dinastia Song. O período da Dinastia Qing também é muito bom para este tipo de histórias visto que foi durante este período que a etnia Manchu tomou conta do poder, sendo a China maioritariamente Han. As razões mais frequentes dos foras-da-lei do Jiang Hu num contexto de campanha:

  • Luta contra um magistrado corrupto.
  • Luta contra um governo corrupto.
  • Luta contra um eunuco corrupto.


"You think I'm old and feeble, do you? Well, face my Flying Windmill Kick, asshole!"

Um mercador solitário chega à estalagem e pede comida ou alojamento. Rapidamente cai morto, sem ninguém conseguir ver porquê.

-Porque caiu ele morto?, será que foi envenenado por algum potencial inimigo?
-Porque viajava sozinho?, será que era um espião de um clã inimigo?
-Que carga transportava?, para viajar sozinho, não podia ser uma carga muito grande.

–~~–

Não te metas comigo, camarada; tenho n avisos à navegação, alguns deles em público, e não tenho medo de os usar.

NOTA: Editei a minha mensagem original para a tornar mais clara. As adições estão em negrito.

E agora uma nova:

AGÊNCIA DE SEGURANÇA / SERVIÇOS DE ESCOLTA

Na China antiga existiam organizações que ofereciam protecção a mercadores ou quem tivesse dinheiro para pagar os seus serviços. Segundo Jinyong, no seu livro The Book and the Sword (1955):

"As agências contratam guarda-costas ou escoltam mercadorias e pessoas, especialmente em viagens longas. Cada agência tem um sinal diferente e usam-no para que os fora-da-lei e amigos saibam quem são. O negócio destas agências é 1/7 boa-vontade e 1/3 capacidade de combate."

Aqui, o grupo de PCs é criado como pertencendo a uma destas organizações. Isto não invalida o elemento wuxia. Um guerreiro xia pode muito bem pertencer a uma organização destas, embora isto também permita juntar PCs de outras origens. É uma excelente maneira de iniciar uma campanha, se bem que um pouco cliché: "O vosso superior pede-vos para escoltar uma caravana do ponto A ao ponto B." A partir daqui, acontecem todo o tipo de aventuras. Outra vantagem é que cada trabalho permite aventuras diferentes em locais diferentes. O GM só tem que iniciar uma aventura com um superior a ordenar às personagens que escoltem esta ou aquela pessoa e a partir daí tudo se desenrola naturalmente. Este tipo de cenário permite aventuras episódicas ou longas campanhas. Permite também que as personagens já se conheçam a fundo antes da primeira sessão visto.


"You think I'm old and feeble, do you? Well, face my Flying Windmill Kick, asshole!"

[quote=Dwarin]Neste caso, o grupo de personagens teria que ter uma razão para estarem todos juntos. O casamento só por si não é suficiente. [/quote]Nesta cena, os personagens ou estão ligados ao noivo ou estão ligados à noiva. Se um deles for raptado(a), toda a gente se junta para o(a) ir salvar, especialmente aqueles que sabem algum kungfu. Parece-me simples.

TEMPLO DE SHAOLIN

Mais uma entrada clássica das histórias de Artes Marciais e também de wuxia, embora nem todas as histórias wuxia tenham monges de Shaolin e vice-versa. Todas as personagens pertencem a um templo de Shaolin. Mais uma vez, permite criar um background em comum e uma razão para que todas as personagens se conheçam e vivam aventuras em conjunto. No entanto, do ponto de vista histórico, o templo de Shaolin só foi construído na China no ano 496 D.C. Isto em si não é uma vantagem a não ser que o GM queira aventuras em períodos históricos anteriores. A grande desvantagem é que todas as personagens têm que ser do sexo masculino porque o templo de Shaolin não admite mulheres. Por outro lado, uma jogadora engenhosa pode tentar jogar uma mulher que se faz passar por homem num Templo de Shaolin o que pode levar a uma série de peripécias cómicas e dramáticas. A campanha também fica limitada porque gira em torno dos monges budistas (PCs) que não eram wu xias no verdadeiro sentido da palavra. Talvez seja mesmo a opção mais limitativa de todas as que foram apresentadas aqui.


"You think I'm old and feeble, do you? Well, face my Flying Windmill Kick, asshole!"