Que jogo é este?
O Endeavor: Age of Sail é a segunda edição do Endeavor, um jogo sobre a expansão colonial europeia entre os séculos XV e XIX, que foi publicado originalmente em 2009.
Outra vez o colonialismo... O jogo é temático?
De certa forma, sim.
Ah! Então andamos com miniaturas de barcos e soldados de plástico pelo tabuleiro a aterrorizar os mares, pilhar as riquezas naturais e culturais e escravizar, torturar, violar e matar com armas e germes os habitantes de outros continentes, certo?
Err... Não exatamente. O que fazemos em 90% do tempo é pôr pequeno discos de madeira em espaços no tabuleiro que representam cidades, frotas e estado de conhecimento dos europeus sobre outras regiões do globo.
À conquista do Novo (e do Velho) Mundo com... discos?
Bolas. Então é um jogo abstrato?
Também não. Os mecanismos são altamente abstratos, mas a verdade é que o tema dá sentido ao que se está fazer. O que é a definição de jogo temático, na minha modesta opinião.
E ao menos a arte é evocativa?
Até certo ponto. Mas é tudo muito discreto e minimalista. O tabuleiro principal até é agradável, com as regiões a terem cores diferentes, mas com tonalidades pouco agressivas. Já os tabuleiros individuais são mesmo espartanos. E gostava que os símbolos das ações e principalmente os bonus nos tiles de edifícios surgissem mais destacados.
Adiante. Como se ganha o jogo?
Como costuma acontecer, fazendo mais pontos de vitória que os adversários. E as duas formas mais importantes de ganhar pontos são ocupando espaços de cidades no tabuleiro principal e desenvolvendo o tabuleiro individual.
E como se joga?
Como um euro clássico. Elegante, com poucas regras mas que proporcionam muitas decisões - para não falar escolhas morais - difíceis.
No seu turno, cada jogador pode fazer basicamente uma de três coisas:
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colocar um disco num espaço com uma cidade, frota ou num espaço da pista de exploração de uma região do globo onde não esteja ninguém (ocupar ou navegar, na terminologia do jogo);
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substituir um disco do adversário por um disco seu num espaço do tabuleiro (atacar);
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reclamar uma carta de uma região do clube onde se tenha onde já se tenha um disco (algo como estabelecer uma rota de comércio, tematicamente).
Há mais umas tarefas de upkeep, mas a base do jogo é isto.
Então, é uma espécie de Damas "on steroids"?
Go "on steroids" seria uma analogia melhor, pela maior liberdade na colocação dos discos e por haver bonus no controlo de espaços vagos entre discos.
Mas há mais: o que determina o número e tipo de ações que podes fazer no tabuleiro principal é o estado de desenvolvimento do teu tabuleiro pessoal (tematicamente, a tua sociedade/economia). Por isso, se tivesse de identificar um jogo que o Endeavor me faz lembrar (ainda que vagamente) seria o Hansa Teutonica.
Retrato de uma sociedade esclavagista. Note-se os edifícios, que determinam o número total e tipo de ações que o jogador tem durante uma ronda.
Gostas do jogo?
Adoro! A primeira edição já era boa. Mas a segunda introduziu melhorias tais que o jogo entrou no meu top 10. Eis o que eu gosto no jogo:
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A fortíssima interação entre o tabuleiro principal e o tabuleiro pessoal. Precisas de desenvolver o teu tabuleiro pessoal para teres mais e melhores ações no tabuleiro principial. Mas só podes desenvolver o teu tabuleiro pessoal se agires sobre o tabuleiro principal. Gerir este equilíbrio é exigente, mas muito divertido.
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O elevado grau de conflito direto e indireto entre os jogadores. O ataque direto é uma opção cara e, podendo ser decisivo, tem de ser usado de forma cirúrgica. Mas quase tudo o que fazemos no jogo tem tanto em conta o que nós ganhamos como o que impedimos os outros de fazer. O que faz com que estejamos sempre envolvidos no jogo, mesmo quando não é a nossa vez.
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A simplicidade e coerência temática das regras.
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A cooperação forçada. Abrir uma região exige, em geral, que mais do que um jogador contribua para a pista de exploração. Aquele que contribuir mais - e só ele - recebe uma recompensa quando a região fica aberta, pelo que não o queremos ajudar. Mas ficar de fora do processo de descoberta também não é nada bom, pois põe-nos em desvantagem para ocupar as cidades e reclamar as cartas mais valiosas da nova região. Decisões, decisões...
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A parcimónia dos componentes. Adoro quando os componentes (peças, cartas) têm mais do que uma função num jogo. No Endeavor, é o que acontece com os discos de madeira, que são usados para tudo: meio de desencadear uma ação, forma de ocupar espaços no tabuleiro e até moeda para pagar os custos da guerra.
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A duração do jogo. Por incrível que pareça para um jogo tão intenso, um grupo com alguma experiência despacha uma partida em apenas 90 minutos (ou até menos).
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A rejogabilidade, acentuada pelos "exploits", uma novidade desta edição. São três pequenos tabuleiros (escolhidos de um total de 15) que representam eventos históricos associados a regiões do jogo. Os jogadores que tiverem presença nas duas regiões de referência de cada exploit têm acesso a ações especiais e formas de pontuação alternativas.
Exemplos de exploits
Este jogo é para mim?
Quem gosta de euros clássicos, vai sentir-se como peixe na água. Todavia, o Endeavor está longe de ser um multiplayer solitaire, pelo que jogadores mais aversos ao conflito podem não apreciar o jogo. E quem vier à procura de uma simulação histórica, económica ou militar vai sair severamente desiludido.
No resto, vejo o jogo a ser apreciado por uma audiência bastante vasta. Não é um gateway game, mas pode facilmente ser um next step. As regras são claras e acessíveis. Em complexidade, diria que o Endeavour estará ao nível de um Concordia. E o tempo relativamente curto de jogo faz com que não seja demasiado esgotante para novos jogadores.
O que pode afastar alguns e algumas é o tema...
Pois, (mais) um jogo sobre colonialismo...
Eu sei. Em minha defesa e do jogo, posso dizer que o Endeavor obriga os jogadores a pensar na realidade do colonialismo e do imperialismo através de um mecanismo muito interessante e ponderado: o baralho da escravatura.
Todas regiões têm um baralho de cartas. Mas a Europa tem dois e estão ambos acessíveis desde o primeiro minuto. Um deles representa a escravatura. Ir buscar cartas ao baralho de escravatura, no início, é altamente compensador, pois permite dar um salto considerável nos níveis de desenvolvimento do tabuleiro individual.
Só que as cartas de escravatura têm um custo: se descartadas, valem pontos negativos. E descartar as primeiras cartas que se adquire é muitas vezes uma boa opção no jogo, pois o espaço é limitado e, com o avançar do jogo, cartas melhores ficam disponiveis.
No meio, o baralho da vergonha
Mais anda: tanto alguns exploits (p.ex. a Revolução Haitiana e o Underground Railroad) como a carta mais apetecível da Europa têm associados o evento da abolição da escravatura. Este evento basicamente obriga os jogadores a descartarem todas as cartas de escravatura que tiverem - o que, além dos pontos negativos, pode ser devastador se a economia de um jogador depender demasiado delas. Pode assim lançar os jogadores num mini-jogo de luta pela Europa ou pelos tabuleiros de exploits, com vista a conseguir ou impedir a abolição da escravatura.
A Revolução Haitiana é particularmente penalizadora para quem embarque na escravatura.
Sejamos francos: rumar ao desconhecido e colonizar terras distantes e exóticas é um tema com um enorme apelo na nossa imaginação. Não é assim de espantar que seja um tema recorrente em jogos de tabuleiro, sendo comum a colossos como o Catan ou o Terraforming Mars, por exemplo.
O que posso dizer é que olho para o Endeavor e tenho de reconhecer que há maneiras piores para um jogo de tabuleiro tratar o significado e as consequências profundamente nefastas e duradouras do colonialismo. O Endeavor não dá uma de Puerto Rico, ignorando o inferno esclavagista das economias de plantação do Caribe e chamando "colonos" aos cubos castanhos. Nem se põe a tratar os seres humanos como uma mercadoria no meio de outras, estilo Five Tribes (uma escolha gratuita no que é, quanto ao resto, um excelente jogo).
Em vez disso, toma a escravatura como parte integrante do tema e, logo, do jogo. Consegue, pela perda irreversível de pontos associada, aludir à miséria moral das sociedades que a praticaram e que dela beneficiaram, bem como ao carácter duradouro dos seus impactos. Oferece, pela mecânica associada, pistas para pensar como é que uma prática tão odiosa pôde, em vários contextos históricos, ser concebível, tolerada e até encorajada ou como a sua abolição, na lei e na prática, enfrentou (enfrenta?) tanta resistência. E introduz, pela temática, uma dimensão moral em algumas opções do jogo. Estar a fazer cálculos sobre se me compensa em pontos de vitória ir à sexta carta da Europa e abolir a escravatura - e depois aperceber-me o que significa tematicamente o que estou a fazer, dá que pensar...
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