Europa Universalis: the Price of Power, uma bisarma de jogo

A praga que devastou o Golfo da Biscaia deixou a sua marca mutilante nas ruínas de Paris. Transportada por navios ingleses que atracaram em Bordéus, alastrou-se sem piedade, atingindo as praias da Galiza tão severamente como as margens do Sena. Na capital francesa, até o monarca Luís XI de Valois sucumbiu à doença, deixando o reino sem destino seguro, por todos os lados ameaçado. A união dinástica com os aliados provençais, estabelecida durante este reinado, rapidamente se revelou ténue nesse momento de fraqueza, sendo o novo regente Roberto (de origem incerta) obrigado a mobilizar esforços apaziguantes. A norte, as conquistas recentes aos ingleses na Normandia mantinham acesas as tochas da discórdia. Os ingleses esses mesmo recusavam ainda, passadas décadas de negociação aguda, a submissão de Bordéus à coroa francesa enquanto simultâneamente marchavam impunes sobre os clãs escoceses, há muito nossos aliados. A sul, os reis de Castela e Aragão, domínios recentemente unidos, consolidavam o seu controlo das terras napolitanas, que designavam seus vassalos, e tomavam poder hegemónico sobre o concílio papal, extinguindo por completo a participação francesa nessa nobre instituição, agora claramente corrompida por interesses ibéricos.
Ainda contudo, uma luz alimentaria as esperanças de Roberto nos derradeiros momentos. O perspicaz matrimónio com a filha de Charles le Hardi, duque da Borgonha, nas vésperas da morte deste permitira à coroa a reivindicação das terras aquém do Reno, largamente expandindo as suas possibilidades, talvez até ao ponto de finalmente expulsar a mancha inglesa do continente. Foi aí, com a notícia de que a frota britânica sitiava a costa da Irlanda, em pretensões de ainda outra expansão imperialista, que Roberto decidiu tomar medidas drásticas e, mobilizando toda a capacidade militar francesa, marchou sobre Bordéus. A batalha que se seguiu foi curta mas sangrenta. Os ingleses escaparam-se com apenas a sua artilharia, mas o exército que se levantara em Paris também sofrera graves golpes. Com apenas as forças estritamente necessárias para tomar a cidade, os franceses lamentaram a sua incapacidade em impedir a queda de toda a ilha esmeralda à incursão britânica. Mas o real problema viria depois. Ainda as negociações de paz não estavam concluídas, dois anúncios tenebrosos se abateram sobre o regente. Um: revoltas no sul da França haviam tomado Provença e ameaçavam toda a Aquitânia. Dois: o imperador austríaco denunciara a tomada da Borgonha e cruzara o Reno com uma invasão que prometia a libertação e retorno dessas terras à esfera sacro-romana.
Entretanto, os britânicos anunciaram a total consolidação das “suas” ilhas. Os espanhóis, diziam, encontraram outras ilhas, novas, a oeste do Atlântico. Para a França, o futuro seria difícil.


Cenário S01-01 a três jogadores.

O descrito acima aconteceu, ponto por ponto, nas rondas finais de uma sessão que demorou perto de 10 horas, constituindo (apenas) a primeira Era de Europa Universalis: the Price of Power, da editora Aegir Games e do designer Eivind Vetlesen.

Agradeço desde já aos parceiros de história que controlaram habilmente os ingleses e os castelhanos, apesar de jogarem pela primeira vez. O cenário escolhido previa continuarmos pela segunda Era, mas isto é grande como o raio e não houve tempo. E antes de mencionar seja o que for sobre as mecânicas, as dinâmicas ou as temáticas preciso de deixar isto bem claro. É mesmo grande como o raio. Em todos os aspetos: tempo, complexidade, peso, volume, conteúdo. Em particular em relação à duração, o jogo oferece no total quatro Eras em sequência, e eu proponho que a aposta da editora Aegir Games de que se joga a campanha de uma ponta à outra em em 16 horas é consideravelmente otimista. Sobretudo se considerarmos a possibilidade de estender a sessão a 6 jogadores (que é o recomendado, veja-se bem!). Ainda com as devidas salvaguardas (lembro que este relato de uma Era em 10 horas a três jogadores é com iniciantes), cada sessão deste jogo será longa. Ainda assim, a coisa pode tornar-se um pouco mais acessível atendendo a que uma grande diversidade de cenários pré-feitos permite iniciar em Eras que não a primeira e estabelecer limites específicos de só uma ou duas Eras, reduzindo, espera-se, o compromisso a uma sessão que caiba razoavelmente num dia apenas. “Olha que 16 horas também cabem num dia”, ouvi dizer, para espanto de ninguém.

Tudo isso dito, e francamente com todos os viés que me são apropriados… que espetáculo de produto! Sou capaz de dizer que jamais um videojogo foi adaptado tão fielmente ao nosso meio analógico. Incluo nessa consideração a absurda barreira de entrada, evidente tanto no original como no tabuleiro, mas também a panóplia de ações, a diversidade de experiências, a imersão histórica, as narrativas emergentes. Mas afinal de que se trata? Como é que se explica um jogo desta magnitude sem recorrer a reduções estereotípicas e chavões reciclados de 4X ou Twilight Imperium pintado de Here I Stand?

Europa Universalis: the Price of Power (EUPOP) é um jogo de tabuleiro inspirado na série de videojogos Europa Universalis do estúdio Paradox Interactive (agora na quarta iteração, vulgo EU4), ela própria inspirada no velho jogo de tabuleiro Europa Universalis de 1993 por Philippe Thibaut. É o chamado full circle, de volta ao meio que o gerou, agora com outros modelos, outra estética (não só visual), e todo um novo público, plenamente contaminado pela experiência. Sobre os viés que referi, esclareço que sou fã do videojogo, contando horas a mais do que seria saudável expressar, pelo que peço considerem-me “plenamente contaminado”. Esclareço também que não tenho experiência com o original de Thibaut, daí que não possa estabelecer as devidas comparações. Devo apenas salientar que, segundo entendo, se afasta significativamente desse, incorporando a todos os níveis os sistemas e intenções de EU4 em detrimento dos de Thibaut.

Entre 1444 e 1820, de 1 a 6 de entre 18 reinos europeus (8 principais e 10 secundários) lutam pela hegemonia e sobrevivência (talvez não nessa ordem) na Europa e no mundo, assimétricos por nuances geográficas, religiosas, políticas, e por caracterizações históricas cronologicamente faseadas, dentro de um modelo género sandbox em que não vigora a primazia da autenticidade, mas onde um conjunto de sistemas-guia conduzem a resultados por vezes plausíveis, por vezes surpreendentes. Cada jogador controla os destinos de um reino (Portugal, Castela, França, Inglaterra, Áustria, Polónia, Otomanos, são alguns exemplos) gerindo as suas capacidades (económicas, militares, tecnológicas) e desenvolvendo a sua presença no mapa através de conquistas, subjugações, exploração e diplomacia.


Espanha, da Galiza a Nápoles.

O motor principal de jogo é um sistema de pontos de ação, designado monarch power, distríbuido por três categorias: administrativa, diplomática, militar. No início de cada ronda, os reinos recebem uma quantidade de monarch power baseada na distribuição dos atributos particulares do seu monarca histórico (durante o jogo será possível, e necessário, ir alterando o monarca), somando a esta a gerada pelo conjunto de conselheiros até então contratados, um por categoria: administrativa, diplomática, militar. Com esses pontos os jogadores poderão escolher de um menu de 22 ações básicas que está sempre disponível, pagando custos em monarch power da categoria respetiva e ducados (dinheiro). Além destas, outras mais de 20 ações possíveis estão distribuídas por cartas que os jogadores têm a oportunidade de biscar no início de cada ronda, estas também repartidas em três baralhos: administrativo, diplomático, militar. Estão a ver a coisa. Os jogadores tomam uma ação à vez, até que todos passem voluntariamente ou por falta de recursos (geralmente por falta de monarch power), iniciando-se então uma nova ronda com recursos frescos a gastar. Cada Era contém 4 rondas. Uma campanha contém 4 Eras. Daí as 16 rondas, a uma hora cada (querias tu!), 16 horas.
Entre estas ações estão mecanismos clássicos de recrutamento e mobilização de tropas (meeples), alocação de influência (cubos) no mapa, aquisição de recursos (dinheiro), adiante. À primeira vista genéricos, estes são processos aqui mais complexificados que o habitual em jogos do género. Recrutar tudo bem, mas atenção ao limite de mobilização de cada área, atenção aos custos diferenciados de infantaria, cavalaria e artilharia (se já pesquisada a tecnologia necessária), atenção à diferença entre regulares, aliados e mercenários, e atenção à frota naval, não se vá confundir galés ou naus com navios mercantis. Mobilizar também, mas atenção à diferença entre uma ativação naval e uma ativação terrestre, atenção às montanhas que dificultam a passagem, atenção à requisição de acesso por terreno neutro. Para converter uma área à religião estatal é necessário inclusive reconhecer os reinos habitantes ou consultar uma tabela de apoio e assegurar que todos os aí presentes estão em conformidade com a religião alvo.
São dificuldades que se vão desvanescendo com experiência, claro, mas nunca completamente. E isto sem falar das condicionantes em declarar uma guerra, ou estabelecer uma aliança, ou anexar um súbdito. Sem mencionar as características próprias do Império Sacro-Romano ou da Cúria Papal, com seu tabuleiro secundário próprio, ou dos efeitos de uma excomungação ou crusada. Sem sequer abordar o processo de resolução de paz, nos seus diversos termos. Pensavam porventura que uma guerra apenas acabaria em conquista, pois que tal uma conversão forçada, ou uma humilhação, ou uma libertação de súbditos, ou um acordo dinástico? Cada uma das quase 50 ações tem o seu processo detalhado, por vezes intuitivo, por vezes pouco. E o mesmo se passa com as fases de upkeep e refresh, que ainda hoje, depois de várias sessões a solo e a multijogador, me recuso a seguir senão pela letra fiel do livro de regras, ponto a ponto, linha a linha, com cuidado e atenção redobrada.


O tabuleiro francês, desprovido de monarch power, quase sem reservas militares, e com todas as personagens em risco de morte, pouco antes de uma praga dar o desfecho final em Louis XI.


Problemas domésticos na Borgonha e às portas de Paris.

Parece negativo, bem sei. Apresento as potenciais nódoas para que não se vá ao engano. E no entanto, tão bom. Olhando além da minúcia mecânica encontramos um gerador de narrativas emergentes absurdamente contextuais. Os eventos históricos apresentados todas as rondas (mais um do que o número de jogadores) ajudam ao enredo com certeza. Descrevem situações históricas, se bem que aplicadas a contextos de jogo muitas vezes diferentes do realístico, e permitem aos jogadores a escolha entre rumos mais ou menos factuais. No conto com que iniciei este texto, a citada praga, as revoltas e a intervenção austríaca foram eventos escolhidos pelos meus oponentes em momentos estrategicamente adequados com implicações mecânicas óbvias, mas cujas implicações narrativas subtis ajudaram a montar a imagem de uma França em decadência depois de várias incursões falhadas e a morte de um monarca. Plausível, não? É uma experiência que não vejo noutro lado, a este nível de imersão e detalhe. E por isso aceito a minúcia, aceito a dificuldade e a extensão, aceito o compromisso. Porque se fosse mais pequeno ou mais fácil, seria menos.


As ilhas britânicas no final do jogo.


Colombo no Novo Mundo.

Não me querendo alongar muito mais, abordo questões mais técnicas antes de finalizar.

Existem duas versões deste jogo à venda, base e deluxe. A edição deluxe contém componentes de madeira que substituem alguns marcadores de cartão e oferece mais conteúdo, nomeadamente uma extensão do mapa principal à Europa de leste (o base apenas inclui a Europa ocidental e central até sensivelmente à zona da Hungria) e respetivos reinos (otomanos, russos, bizantinos, polacos, suecos), bem como o conteúdo relativo à quarta Era (circa Napoleão). Uma extensão ao jogo base é possível com a expansão Fate of the Empires que adiciona todo o conteúdo da Deluxe sem os componentes de madeira.
Dentro da caixa encontram-se um livro de regras, dois livros de cenários (um na edição base), um de regras para solo, e ainda várias folhas de apoio com diferentes usos. O livro de regras é longo e complexo, num estilo que parece fazer a ponte entre, por um lado, uma descrição acompanhada de imagens exemplificativas comum a um eurogame pesado, e, por outro, uma estrutura referenciável por tópicos e subtópicos digna de um wargame da GMT. No site da editora está ainda disponível um exemplo de ronda usando o primeiro cenário que recomendo a quem se queira atrever.

Em relação ao modo solo, algumas notas. Primeiro, não é só para solo. O jogo permite a substituição de qualquer número de jogadores por bots em qualquer um dos cerca de 15 cenários. Além disso, permite a substituição durante a própria sessão de jogo (ainda não precisei de o fazer, mas parece simples). Funcionam muito bem, são extremamente flexíveis, respondendo adequadamente à situação de jogo, e são condicionados por reino (seja, um bot a operar a Dinamarca comporta-se de forma diferente de um que opere Castela). São controlados através de um baralho de cartas que remete para diagramas flowchart bem estruturados mas por vezes longos, o que pode afastar algumas pessoas. Três dos cenários são especificamente preparados para solo, dos quais experimentei dois com muito gosto, onde o jogador é colocado numa posição de extrema desvantagem (fãs de EU4 reconhecerão certamente a campanha dos bizantinos). Também estes bots ajudam na construção das narrativas que mencionei, sobretudo pelo elevado grau de contextualidade que consideram nas suas escolhas, pelo que podem ser uma adição complementar a uma sessão a multijogador.


Cenário bizantino (roxo) a solo com dois bots. Note-se a cruzada sobre o bot infiel otomano (verde) lançada pelo bot que opera Veneza (vermelho).

Por último, não podia deixar de comentar a temática histórica declaramente eurocêntrica e celebratória de um passado colonial onde os territórios estão “vazios” à espera de quem os “descubra”. Parece-me importante reconhecer o que mimicamos, mesmo que nos divertamos a fazê-lo. A meu ver não é produtivo fazer do tema um tabú, e penso que de facto devemos interagir diretamente com estas representações, conscientes dos estereótipos que propagam e mitos que sustentam, procurando debatê-las quando apropriado sem as demonizar. Somos afinal consumidores inteligentes, distinguimos o mapa e o terreno, o retrato e a pessoa. Somos também filósofos de café e cerveja, capazes de interpretar o que consumimos, mutando com o reconhecimento de cada experiência, e com ela crescendo, imersos na condição humana com todas as suas máculas. Também isso é jogar.

10/10, e ensino a quem quiser.

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Excelente leitura!

Aguçou-me a curiosidade… e também o dissabor de ainda me soar utópico tamanho investimento temporal :sweat_smile:

Por agora deixo a história alternativa às vontades de Pax Ren, mas a magnitude do Europa aparenta resultar num boost grandito na abrangência e tangibilidade.

Um dia!

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Pax Ren realmente é boa comparação. Tem alguns dos mesmos problemas, sobretudo quanto à miríade de exceções e pormenores, mas a vantagem de se resolver em hora e meia (muitas vezes menos que isso até) dá-lhe uma presença mais fácil na mesa.
A perspetiva é que é completamente diferente. No Pax Ren estamos a alterar indiretamente o rumo da história, e quando uma abordagem resulta em fracasso somos impelidos a alterá-la. Não há problema nenhum em tentar uma jihad com os otomanos num turno e depois perceber que se calhar estamos melhor a fazer um strawman no Papa para uma vitória por repúblicas.
Aqui és obrigado a lidar com as consequências das tuas escolhas de uma forma mais direta. A sofrer com os desastres e vibrar com os sucessos. Principalmente se pretenderes correr um reino ao longo dos 370 anos que isto pretende modelar.

Bela review! Obrigado.
Já joguei o jogo a 4 jogadores em que ninguém ainda tinha jogado e só um tinha lido as regras. Após mais de 1h de explicação lá começámos a experimentar o jogo… parámos ao final de 6 horas depois de termos jogado apenas 2 rondas (das 8 do cenário que havia sido escolhido). Deu para ter uma ideia do jogo e prometemos em breve voltar a ele a 3 jogadores (após todos vermos mais sobre o jogo). Parece ser um bom jogo mas que requer um bom/grande investimento inicial…

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Se tiveram dificuldade recomendo verem o exemplo de ronda no site da Aegir. E de facto a 3 é melhor como primeira experiência. Deixam os austríacos de parte, e com eles todas as minúcias relativas ao HRE.

Sugiro também que não pretendam fazer 8 rondas, apontem só para as 4 da primeira era. É mais um conjunto de regras que podem ignorar, especificamente quanto ao advento do protestantismo e religiões infeciosas (protestantes e contra-reforma).

Além disso, evitem as regras avançadas de Power Struggles e NPR Invasions, que são boas mas desnecessárias numa primeira abordagem.

Boa sorte!

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Bem, que grande review!!
Apesar de ficar super curioso com este tipo de jogos extra longos, a verdade é que duvido que tenha a disponibilidade para poder jogar um. No entanto adorei ler o texto e ficar com ideia de como é o jogo. Obrigado

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