O Feng Shui Action Movie Roleplaying faz 10 anos este ano. Coincidência, é também o 10º aniversário da minha visita à China, principalmente a Macau, que é muitas vezes filmada nos filmes de Hong-Kong. E foram os filmes dessa (na altura) colónia britânica que Robin D. Laws baseou o seu RPG. O que me atraiu nele? Bom, na altura ainda a revista Pyramid (da Steve Jackson Games) era de papel, e fez uma crítica brilhante ao jogo. As descrições do que se podia fazer eram… mind-boggling. Uma vem-me à mente (e parafraseio): “Estás a fugir de moto num parque de estacionamento no topo de um edifício, atrás de ti perseguem-te os gangsters de Big Brother Tien. Consegues a custo desviar-te das balas, e eles aproximam-se. E à tua frente, aparece na grande janela envidraçada o helicóptero das forças do general Tang, pronto para te mandar um rocket. Aí tu dás um tiro ao condutor do carro que te persegue e conduzes com a moto rente ao chão, passando por debaixo do carro e pondo-te em pé atrás dele. Este, sem controlo, parte a vidraça e espeta-se contra o helicóptero numa explosão laranja.”
Fiquei imediatamente curioso. Não apenas com o jogo, mas com os filmes de Hong-Kong, que à altura ainda não tinha visto nenhum. Depois, estive lá, na China que originou essa cultura popular. E fiquei apaixonado pelos locais e pelas diferenças e quando me vim embora, vim com um desejo enorme de voltar, pois pareceu-me que não tinha raspado nem o pó em cima da superfície. Comprei o jogo, e vários dos filmes – o jogo vem com uma filmografia que dá uma ideia da produção de Hong-Kong de meados dos anos 80 a meados dos anos 90. A paixão ainda não passou.
Robin Laws criou um setting onde a maioria dos géneros principais dos filmes de acção de Hong-Kong se pudessem encontrar. Ora, os géneros vão de wuxia – género tipo Crouching Tiger, Hidden Dragon (mas de baixo orçamento – todos os filmes de HK o são), de guerreiros e artistas marciais com super poderes, normalmente integrados vagamente num determinado período histórico no passado da China, ou então claramente no Século XIX, onde a China sofre o golpe mais rude à sua supremacia, quando as potencias ocidentais se vão a pouco e pouco apoderando de áreas de território chinês; heroic bloodshed, normalmente tipificado pelos filmes que o realizador John Woo fez durante a última metade da década de 80, como A Better Tomorrow, The Killer, Hard Boiled, que são filmes de tiroteio urbano, com super polícias ou super assassinos de competência extraordinária e onde as personagens principais sobrevivem a quilos de chumbo que lhes são enfiados no bucho; ou fantasias futuristas, que muitas vezes são versões dos filmes wuxia passados no futuro.
A maneira como Laws resolveu a disparidade de géneros foi criando um setting que fizesse bastante uso das viagens no tempo, podendo assim mágicos e fantasmas da antiguidade encontrar-se com monges do templo de Shaolin do Sec. XIX, com assassinos do presente e ciborgues do futuro. Coisa que não foge ao estilo: em HK há filmes em que guerreiros do passado ficam congelados até ao presente, e monstruosidades ciborgues do futuro vão caçar cérebros (ou sangue, ou outro órgão ou fluido corporal qualquer) ao presente. Os heróis de FS viajam no tempo através de uma realidade paralela chamada The Netherworld, ou Inner Kingdom. Nessa realidade, de vez em quando abrem-se portais para certas épocas, e fecham-se para outras. Desde o ano 1986, contado no Inner Kingdom, os portais estão abertos para as seguintes épocas: 69 DC, 1850, o tempo presente, e 2056. A partir de cada época, e mesmo do Netherworld, sai uma ou mais facções que combatem para controlar o fluxo temporal e dominarem não só o mundo, como toda a história.
A maneira como se resolvem os paradoxos temporais é que simplesmente ir atrás no tempo e alterar o passado não resolve grande coisa só por si. A história corrige-se. Se for a 1850 e matar um antepassado meu, quando voltar outra pessoa foi o meu antepassado e a minha vida corre bastante como correu antes. O que faz com que a história mude é o fluxo do Chi. No Oriente, o Chi é a energia vital de toda a existência, um conceito onde George Lucas foi buscas a sua ideia da Força. No Oriente, o Feng Shui é a arte de canalizar bom Chi através da maneira como os objectos se distribuem no espaço. Assim, a arquitectura e/ou a decoração interior de um edifício podem ter bom ou mau Feng Shui, assim como uma paisagem ou área. No jogo, as personagens podem ficar em sintonia com várias áreas com bom Feng Shui. Com isso, o Chi flui em seu benefício, trazendo-lhes sorte, fortuna e poder. Usando o Feng Shui o fluxo do Chi, a história é alterável. Se um herói for ao passado, e lá se puser em sintonia com uma área de bom Feng Shui, quando regressa ao presente têm uma surpresa: se ele era Bob o Varredor, no novo presente pode ser Bob o Dono do Prédio. E já ninguém se lembra do Bob o Varredor, ele tem de investigar o próprio passado para saber quem é. Só se lembram dele antes as pessoas que viajam pelo Inner Kingdom, os Innerwalkers. Quanto mais áreas estiver unido, melhor a vida dele foi – mas maior a sua confusão.
Umas poucas de áreas provocam mudanças superficiais, como a alteração da vida do Bob mas se uma facção se apoderar de um número suficiente de áreas de Feng Shui pode provocar uma Mudança Crítica e alterar toda a história a seu favor. Aconteceu isso em 1986, quando o mundo era controlado pelos Quatro Monarcas, mas rivais seus, no século XII, apoderaram-se de áreas de Feng Shui suficientes para alterarem a história em seu favor e termos o mundo que temos hoje, mandando os Quatro Monarcas para o exílio no Netherworld. A história está, portanto, ao sabor das correntes do Chi, e quem controla mais áreas de Feng Shui, controla o mundo.
Não vou contar quais são as facções que lutam pelo domínio da História, mas adianto que há feiticeiros e demónios do passado distante, artistas marciais, ciborgues do futuro, e muito mais. Uma das partes divertidas do jogo é descobrir as facções e as politicas entre elas. O engraçado é que os PCs podem pertencer a uma qualquer das facções ou a nenhuma, se estiverem interessados. Há uma que existe desde sempre, os Dragões, um grupo de heróis que combate sempre o bom combate, e invariavelmente morre de morte horrível. Morreram os últimos há pouco tempo quando o jogo começa para dar oportunidade aos jogadores de continuarem a luta, mas nem a isso são obrigados.
E que podem ser os jogadores? Há uma série de arquétipos por onde escolher. A ideia é começar a jogar o mais depressa possível, daí que o jogo nos dá aqueles arquétipos que personalizamos à nossa maneira. Os arquétipos incluem coisas como o Assassino, o Brutamontes, o Ninja, o Velho Mestre, o Artista Marcial, o Bad Cop, o Good Cop, o Vingador Mascarado, tudo staples dos filmes de acção, com variantes à lá HK, como o Demónio Chinês, o Animal Transformado em Humano, e “bichos” específicos ao setting, como os ciborgues caçadores de monstros e as Abominações, demónios do passado com cyberware do futuro.
O sistema é um de dificuldades, o valor do skill adiciona-se ao valor do atributo, e lançam-se 2 dados de 6, um deles soma-se e o outro subtrai-se. Se calhar 6 em qualquer dos dados, volta-se a lançar e adiciona-se ao resultado, positivo ou negativo conforme for o caso. O que foi novidade foi os stunts – os PCs eram encorajados a descrever as suas acções de maneira cinematográfica, e usarem a imaginação para descreverem as cenas e ignorar um pouco as leis da física e o realismo – seria o realismo dos filmes, não o da vida. Muitos jogos posteriores já pegaram nesta ideia e até a aperfeiçoaram (por exemplo, Exalted e Mutants & Masterminds). Mas nessa altura o deixar os jogadores go wild foi o selling point que tornou o FS um dos meus jogos preferidos até hoje.
Desde aí passaram dez anos, muita coisa mudou no plano do RPG, e mesmo dos filmes de HK. Reparei que era difícil partilhar este jogo com os outros. Houve quem se afastasse pela matéria que tratava, outros pelo sistema, outros pela criação de personagem. Ao ponto de eu ter cometido o crime supremo e ter vendido o material de Feng Shui quase todo que tinha, por desespero de encontrar quem queira jogá-lo comigo. Talvez agora se confirme que fiz bem, ou alguém tenha interesse em experimentar o jogo clássico de filmes de acção. Eu aqui o apresentei.