Grandes cidades, grandes problemas

Monte Cook já demonstrou no impressionante Ptolus que apenas uma cidade pode ser fonte de aventuras para dúzias de vidas. Além de evitar os clássicos problemas de longas viagens dentro de jogo (que vou abordar em uma outra oportunidade), manter as aventuras acontecendo em uma única grande cidade também ajuda os personagens dos jogadores a desenvolverem um vínculo maior com o cenário: depois de proteger a mesma cidade uma dezena de vezes será difícil para um jogador não deixar o seu guerreiro humano ou mago elfo criar raízes ali.

Mas claro, nem todos tem acesso a um suplemento importado como Ptolus (inclusive eu!), então vamos tentar algumas idéias para manter uma única grande cidade como algo interessante por uma longa campanha.

Vamos começar pela primeira constatação: grandes cidades são grandes. Existem milhares de pessoas. Milhares de histórias para serem contadas. Então Bill, o taverneiro, pode parecer trivial quando os jogadores o conhecerem apartando uma briga no seu estabelecimento. Mas será de inestimável ajuda em informações para caçar Qtar, o traficante de drogas exóticas, talvez até possa surpreender os jogadores com uma traição. O que impede que ele mesmo seja um traficante de drogas rival de Qtar?

Continuando com o raciocínio, grandes cidades oferecerem grandes lugares, nenhuma masmorra pode se comparar em tamanho com o sistema de esgotos de algumas cidades da fantasia. Lembro que, em um suplemento não-oficial sobre a cidade de Valkaria que eu e o Tek nunca terminanos, uma das idéias era ter monstros mágicos nos esgotos, colocados lá pela adminstração da cidade para “cuidar” da enorme quantidade de lixo produzida pelos cidadãos (Valkaria, como cidade Imperial, chega a ter quase dois milhões de habitantes em algumas épocas do ano, isso significa muito lixo). Ou seja, eles se alimentariam da podridão da cidade acima. Agora, imaginem que alguns destes monstros fugissem ao controle, escapassem para as ruas da cidade ou começassem a se procriar muito rapidademente. Conseguem ver as possibilidades?

Da mesma forma, outras estruturas dão iguais possibilidades de aventuras. Em uma única cidade há centenas de torres de magos onde experimentos mágicos podem dar errado. Milhares de lojas com comerciantes dispostos a pagarem por proteção contra seus inimigos. Dúzias de sindicatos, lícitos ou não, com os quais os personagens podem se envolver. Além de muitos porões secretos onde cultos a deuses proibidos requerem a presença de um herói para impedir o sacrifício de inocentes.

Agora, se há algo que muda completamente de uma conjuctura global ou mesmo regional quando em comparação com a conjuctura local, são as relações de poder e a velocidade com que se desenvolvem. Se uma guerra entre dois reinos ou províncias pode se desenvolver em semanas, em uma cidade a diferença de tempo entre o estopim, os acontecimentos e o desfecho final de um conflito pode ser de menos de uma hora!

Um excelente exemplo disso pode ser visto no livro O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, um verdadeiro retrato do Rio de Janeiro do fim do século XIX (que continua o mesmo no séc. XXI, mas isso não é assunto a ser discutido aqui). Na narrativa de Azevedo, o conflito entre os moradores do cortiço de João Romão e os do Cabeça de Gato estoura por causa do assassinato de um bandido por um rival pelo amor de uma bela mulata e acaba em um grande incêndio.

Por isso quase sempre os heróis acabam por lidar com as conseqüências de um evento em vez de tentar evitá-lo. No caso do romance de Aluísio de Azevedo, encontrar os culpados pelo assassinato de Firmo e os incendiários seria uma forma de apaziguar os ânimos do povo, ao levar “justiça” para ambos os lados do conflito.

Essa velocidade de mudança no status quo diminui a medida que estruturas mais organizadas entram em jogo. O conflito entre organizações criminosas, escolas de magia e cultos de deuses rivais na maioria das vezes pode ser evitado por jogadores atentos (ou são mais difíceis de causar, quando os jogadores são verdadeiros agentes do caos). De modo geral a regra é: quanto mais organizado é um grupo, menor as chances de ele entrar em um conflito espontâneo.

Para terminar (ufa!), recomendo a leitura de obras do naturalismo, como O Cortiço, citado aqui. Além de ótima literatura também serve como uma experiência valiosa na descrição criteriosa do ambiente em que os jogadores vão passar muito tempo. Tratar a cidade como um personagem, como em O Cortiço, pode ser marcante para os jogadores e muito desafiante para você como mestre.

Quando comprei o meu primeiro rpg - RuneQuest 2 - comprei também o meu primeiro suplemento, Pavis... uma cidade. É um excelente suplemento e ainda do melhor que há por aí ao fim de quase 30 anos.

As cidades são de facto um contexto de jogo fantástico pois têm algo que falta normalmente ao jogo tipo DD standard: continuidade de npcs e intrigas. O problema é que são, por isso mesmo, bastante mais difíceis de gerir.

Sérgio Mascarenhas

[quote=smascrns]Quando comprei o meu primeiro rpg - RuneQuest 2 - comprei também o meu primeiro suplemento, Pavis... uma cidade. É um excelente suplemento e ainda do melhor que há por aí ao fim de quase 30 anos[/quote]Um dos meus suplementos preferidos de todos os tempos é o primeiro volume das Chicago Chronicles, um setting imensamente detalhado para Vampire: the Masquerade, com background, coteries, mapas de relações, encontros aleatórios, várias histórias pré-feitas que fazem evoluir o ambiente e um destaque especial para o Sucubbus Club.

Também gosto muito dos suplementos da Miskatonic (que comprei na edição da Chaosium) Cities, Carse e Tulan. O primeiro é um conjunto de tabelas para gerar encontros aleatórios. Os outros dois são cidades de dimensões diferentes. Os três são complementares e usáveis para fantasia.

Sérgio Mascarenhas