GURPS Voodoo: A Guerra das Sombras

Em meados dos anos 90, o mundo do RPG estava invadido pelo negrume do World of Darkness. Os vampiros, lobisomens e feiticeiros estavam na ordem do dia e o hobby, globalmente, estava interessado em ambientes negros e terríveis. A Steve Jackson Games já tinha seguido a tendência adaptando para o seu GURPS os jogos da White Wolf Vampire: The Masquerade, Werewolf, The Apocalypse e Mage, The Ascension. Como já disse noutro post deste blogue, na minha opinião foi das piores coisas que se fez para GURPS, em termos de mecânicas. Mas uma coisa inovadora, terrível, negra, heróica, e fantástica, que surgiu da linha de GURPS no ano de 1995 foi GURPS Voodoo: The Shadow War.

Para explicar melhor a minha paixão por este livrinho, temos de regressar a pouco tempo antes, seria provavelmente o mesmo ano, ou o ano anterior, que foi a altura em que comprei a primeira edição de Mage, The Ascension. Fiquei passado com o universo, com a noção de realidade, com a mistura de filosofia Pirsigiana e metafísica aristotélica, com a ciência como magia. Tanto que encomendei na Livraria Britânica (não me lembro se existia Internet ou Amazon nessa altura - se existia, eu não tinha) muitos dos livros da bibliografia, incluindo livros de magia e ocultismo que lá vinham referidos - os que acabaram por me influenciar foram The New Magus e Ritual Magic, do autor canadiano Donald Tyson. Foi a primeira vez que li algo de alguém que não só acreditava como praticava magia no mundo real, e descobri ser um homem inteligente e culto, que tenta explicar aquilo que sabe sem me tentar vender a "banha da cobra" e que acredita piamente no que está a escrever. Isso abriu-me os olhos e deu-me interesse em assuntos mais "ocultos", e a partir daí li coisas de Aleister Crowley, Dion Fortune, Israel Regardie, Eliphaz Lévi, entre outros, e fiquei a perceber como os ocultistas do mundo real acreditam que a magia funciona.

Depois comprei o GURPS Voodoo: The Shadow War. À primeira vista, mais um setting negro a aproveitar a fama do World of Darkness. Depois de passada a primeira impressão, no entanto, aparecem os goodies - e que goodies! Basta dizer que desde que apareceu o GURPS Voodoo nunca mais liguei ao Mage. Passei até a chamar ao GURPS Voodoo aquilo que o Mage devia ter sido e não foi. E tudo aqui soa a real e é baseado em mitologias existentes e o sistema de magia aqui apresentado funciona tal e qual como os ocultistas e mágicos declaram que a magia funciona.

O setting é um de História Secreta - a história que conhecemos está errada, ou no mínimo incompleta. A magia existe, sempre existiu e sempre esteve connosco. O mundo ocidental é dominado por associações de mágicos chamadas genericamente Lodges. Cada uma com a sua agenda política, e existindo há mais tempo. Há a lodge romana, que controla de facto a Igreja Católica e nos tempos que correm também algumas protestantes, a lodge Realista, que antigamente havia uma para cada dinastia real da Europa, assim haveria uma Lodge Bourbon, Bragança, Windsor, Orange, Stuart, que andavam às turras umas com as outras até terem sido derrotadas pela lodge Iluminada que destruiu o domínio das monarquias, e assim ficou apenas uma lodge Realista, que promove valores conservadores e racista e o retorno das aristocracias. A já referida Lodge iluminada trouxe o fim das casas reais, o domínio da burguesia, a revolução indústrial, as revoluções americana, francesa e russa, e mais. Estas e outras Lodges têm controlado os destinos do ocidente - especialmente a Lodge iluminada, que promoveu o racionalismo e o espírito cientifico e desacreditou a magia para a manter "fora das mãos erradas". Estes lodges são descendentes dos cultos de Thoth, Hermes e Mercúrio da antiguidade, e seguem uma doutrina Gnóstica como framework ideológico das suas práticas. Assim, as caças às bruxas do ocidente foram mais acções de "juntas-te a nós ou morres", para afastar os praticantes independentes. O domínio dos povos nativos não se deveu ao facto destes não terem poderes para se defender, mas que os praticantes de magia ocidentais eram muito mais e mais poderosos.

Os povos nativos estão longe de estarem indefesos. Especialmente nas Caraíbas e partes centrais do continente americano surgem as tradições sincréticas que se chamaram na cultura popular como o Voodoo: as religiões da Santería, Voudoun e Macumba. Estas têm as suas organizações secretas e os seus Iniciados combatem como podem a opressão do colonialismo branco e, onde sabem que existem, as Lodges. Têm o problema de não estarem organizados nem terem uma frente unida, e muitos iniciados poderosos nem se apercebem, ou querem saber, que decorre uma guerra. Guerra surda, sórdida, suja, que decorre nos ghettos e nos bas-fonds das grandes cidades, nos bairros da lata, nas casas de chuto.

Sem que ambos os lados se deem realmente conta, existe uma terceira força. Chamados os Corruptores, são espíritos que se alimentam de sofrimento e dor. Na mitologia Gnóstica, são os nossos carcereiros no mundo material, que nos atormentam por inveja da nossa alma imortal (a reencarnação é um facto neste setting) e do nosso potencial, e na mitologia Voodoo, são os espíritos canibais que atacam os seres humanos. Nas sombras, estimulam toda a espécie de atrocidades, atiçando lodges contra voodoo, lodge contra lodge, Iniciado contra Iniciado. Poucis são os que se dão conta do verdadeiro inimigo e ultrapassam os seus preconceitos e ódios para o combater.

Neste universo, o mundo está cheio de espíritos. Desde fantasmas dos mortos a espíritos que nunca foram humanos, desde pequenos espíritos travessos aos deuses das religiões do Voodoo, chamados Loas no Voudoun. Os seres humanos são seres de carne com uma pequena particula de espírito. Os seres da criação mais estranhos são os chamados In-Betweeners, seres constituídos 50% de carne e 50% de espírito. São seres de paixões desenfreadas,muitos dotados de livre arbítrio, mas cuja maioria é incapaz de dominar as suas paixões e fomes terriveis. A maioria serve os Corruptores. Há os homens pássaro, homens serpente, e os temiveis skin-changers, que são como um ser humano sem pele, e quando removem a pele de outro assumem-lhe completamente o aspecto. Entre os servos mais terríveis dos Corruptores estão os Devoradores, seres de um tamanho colossal que se escondem por baixo das grandes cidades e se alimentam do sofrimento aí causado. Normalmente enviam os seus sendings, pequenos avatares seus que provocam sofrimento, e têm capacidades de camuflagem mágica imensa - é dificil qo maisd poderoso grupo de Iniciados trabalhando em conjunto detectar com certeza se existe algum Devorador numa dada cidade, e quanto maior e mais poderoso, pior. Um Devorador seria uma mistura de um Great Old One Lovecraftiano com o Glamour que é o monstro vilão do livro It, de Stephen King - mais ou menos 30/70 em proporção.

E a grande inovação reside no sistema de magia. Até ali, a magia do GURPS eram feitiços que funcionavam muito como skills que se rolava 3d6 abaixo do valor - como praticamente tudo. Agora, todos os Rituais - não feitiços - são valores por defeito de um Path, que por sua vez são valores por defeito de um único skill: Ritual Magic (nesse skill tem de se indicar qual a tradição que segue: Lodges, Shamanismo, Voudoun - pois exteriormente e ideológicamente são muito diferentes, mas acabam por conseguir os mesmos resultados). Um Iniciado cujo valor do seu skill de Magia Ritual seja alto o suficiente, pode, teoricamente, executar todos os rituais de todos os caminhos no seu valor por defeito. O mais normal é a um iniciado especializar-se nuns poucos de Caminhos, e nesses, ser melhor na execução de uns rituais que de outros. Normalmente os rituais precisam de três elementos: Espaço consagrado, Elementos materiais, e um certo Tempo para se desempenharem. A qualidade/quantidade desses elementos modifica o lançamento, assimcomo o número de pessoas afectada, a área, a duração. Paralelo a isto, há uma vantagem chamada Iniciação, que indica quão "sintonizada" com o mundo espiritual uma personagem está. Há dez niveis de iniciação, e quanto mais alto for o nível melhor uma pessoa é a usar magia ritual - incluindo poder eliminar elementos dos rituais - embora precise sempre de algum tempo. A iniciação serve também para outros poderes independentes mas complementares à magia ritual. Um dos mais interessantes é ser-se um Guerreiro Espiritual. Este é uma pessoa que pode pedir a um espírito - normalmente um Loa do panteão do Voudoun, mas pode ser um espírito ou deus qualquer - que o possua parcialmente, ganhando poderes e estatísticas melhoradas, mas ficando também parcialmente com a personalidade do Espírito. Assim, um Guerreiro Espiritual de Ogun, Loa da guerra e dos metais, ganha uma força descomunal, mais destreza e saúde (e hit points), capacidade para usar uma espada - ou melhorar fenomenalmente a que já tem - mas também a sede de sangue e arrogância de Ogun, assim como a sua tendência para ter a linguagem e os gestos brejeiros de um soldado, como os tem o Loa encarnante.

Este sourcebook encantou-me tanto que quis usar as suas regras para criar uma campanha passada na Roma Antiga, inspirando-me vagamente no livro Scroll of Thoth de Richard L. Tierney, usando seitas Gnósticas e Gladiadores, In-Betweeners e Guerreiros Espirituais de Hércules ou Apolo, sendo os pcs guiados pelo (ou tendo a oposição do) espírito de Júlio Cesar, adorado na roma de 50AD como Divus Julius, e portanto bem vivo e activo, segundo as regras de espíritos e Loas descritas no GURPS Voodoo.

Mas o Voodoo é absolutamente excelente, pelas razões que o Zé aponta.

Jogaria sem problema nenhum e poria de parte os meus preconceitos pelo GURPS a tua campanha de Roma na Cabana Iluminada.

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Alguém muito sábio disse uma vez: “So, Trebek, we meet again! The game’s afoot!”

Eu já devo ter feito esta pergunta antes, mas não me recorda da resposta: uma vez que o jogo fala sobre tanta coisa, porquê o nome Voodoo e não apenas Shadow Wars? Eu sei que pode parecer uma pergunta idiota, mas deixou-me curioso.

[quote=Nietzsche]Eu já devo ter feito esta pergunta antes, mas não me recorda da resposta: uma vez que o jogo fala sobre tanta coisa, porquê o nome Voodoo e não apenas Shadow Wars?[/quote]

A cultura e religião do Voudoun são as mais bem tratadas do setting, assim como as áreas onde estas se praticam - Haiti, sul dos EUA, Jamaica, etc. São os principais "resistentes" na Guerra das Sombras. Possivelmente o autor pensou que trataria de outras culturas, como o Shamanismo animista dos Nativos Americanos ou o Taoismo chinês, noutros possíveis manuais que se lhe seguiriam. Até os Lodges, que são bastante diversificados ideologicamente, são apresentados de maneira quase unificada - embora cada um pudesse ter o seu próprio suplemento em si - outras editoras fá-lo-iam. Assim, deixou-se aos GMs individuais criar os elementos que faltam. A razão real? Deve ser mais apelativo ter Voodoo no nome...

É curioso ver que o sistema de magia aqui introduzido foi depois recolocado em diversos outros suplementos como uma alternativa "do mundo real" ao sistema "por feitiços" mais adequado à heroic fantasy que o GURPS tinha por defeito, ou usado de maneira paralela por diferentes culturas. A saber, GURPS Hellboy, Old West 2nd E, Spirits e Deadlands.

"Don't hesitate, don't apologise - it's a sign of weakness."
John Ford, cineasta

E agora uma outra questão: até que ponto é que este suplemento de GURPS seria útil para fazer uma adaptação do excelente Pêndulo de Foucault do Umberto Eco? Clarifico esta questão, é óbvio que o Pêndulo é muito mais do que conspirações ocultistas, mas do ponto de vista de role player com propensões para jogos que abordam o sobrenatural sempre tive a tentação de correr uma campanha inspirada na camada mais superficial da obra e (tirando o Kult que, naturalmente, é pau para toda a obra) nunca me passou pelas mãos nada que me parecesse tão adequado.

Qualquer dos suplementos seguintes podia estar na base de uma excelente campanha ao género do Pêndulo de Foucault: GURPS Voodoo, Cabal, Illuminati e Warehouse 23. Qualquer combinação de vários dava uma fora deste mundo, e utilizá-los a todos faria chorar o próprio Umberto Eco.

Veja-se que O Código Da Vinci já estava bem presente nos manuais GURPS Illuminati e Warehouse 23 - e está longe de ser o tema central destes livros. Os fãs de GURPS não encontraram nada de novo nesse romance - e muito menos, no filme.

"Don't hesitate, don't apologise - it's a sign of weakness."
John Ford, cineasta

Filme, qual filme? Fizeram um filme? Ah, aquela coisa com o Tom Hanks…