Iter tortuosum, subita mors

Folium XII

Esse dia, contudo, decorreu sem mais incidentes, ao contrário do que esperávamos, e eu aproveitei para me aproximar de Aldor. Como sacerdote de Kiri-Jolith, supus que ele estivesse bem treinado para responder às dúvidas existenciais que me assolavam a alma desde o dia anterior: tinha falhado à minha promessa de valentia, ao desviar-me dos minotauros? Tinha perdido a honra com tal atitude?

Mas o Aldor deixou-me mais tranquila. É verdade, disse ele, que um Cavaleiro deve ser valente e leal e não abandonar a luta, tentando sempre defender os seus companheiros. Mas nem por isso deve o Cavaleiro ser incauto e temerário ao ponto de pôr em risco não só a sua vida, a troco de uma ninharia, mas também a daqueles que dependem da sua protecção. E neste momento, o grupo com quem viajo é o objecto da minha lealdade, é este grupo que eu devo proteger com todas as minhas forças, e os minotauros eram sem dúvida uma ameaça latente. Até podiam não atacar, mas se o fizessem, todo o grupo ficaria em perigo, e era bem possível que pelo menos um de nós morresse. Por isso, no fundo, fizemos o mais acertado, poupar as forças para as batalhas importantes e inevitáveis e não cair no pecado do orgulho e da vaidade com provocações vãs mais próprias de Cavaleiros Negros que dos defensores da Luz.

Tenho a dizer que as palavras do Aldor me confortaram neste difícil caminho que é o da Cavalaria, que pretendo primeiro merecer e depois manter. Cavalguei bastante mais tempo ao lado dele, mesmo que não tenhamos falado de muita coisa, até que ao anoitecer encontrámos uns vultos semi-enterrados na areia. Ao aproximarmo-nos, descobrimos que era uma pequena família élfica que seguia para o nosso destino, e oferecemos-lhes protecção se viessem connosco.

Fiquei contente com a sua presença, mas ela deve-me ter alterado significativamente. Durante a noite, não parei de sonhar com as nossas aventuras passadas e com os elfos doentes de Pashin. Durante toda a noite, revivi inúmeras vezes e com incontáveis variações as profecias de Sheilin e o riso desdenhoso de Neilathan, de tal modo que não dormi nada e passei todo aquele dia ausente e a dormir em cima do cavalo. As minhas memórias de Ak-Khurman, portanto, são escassas e nebulosas, pelo menos as primeiras, e registo aqui apenas o que os meus companheiros me contaram mais tarde.

Pois, parece que Ak-Khurman era mais ou menos governada por uma espécie de sultão e que os cavaleiros de Steel mantinham a ordem, sem dúvida uma inquantificável melhoria sobre um regime de cavaleiros de Neraka. Mas esta ordem era mantida com um preço: as armas maiores tinham de ficar com eles enquanto frequentássemos a cidade, pelo que tive de aí deixar a minha lança. Não sei se mais algum dos meus companheiros ficou sem armas, mas fico contente por pelo menos me terem deixado guardar a minha espada. Acho que o Aprendiz arranjou contactos lá com um mago e andou a falar com vários capitães procurando algum que concordasse em nos atravessar para Port Balifor pelo melhor preço possível.

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Felizmente esse dia acabou, e no dia seguinte já estava muito melhor. E nesse dia, preocupei-me essencialmente em entrar em contacto com os Cavaleiros de Solamnia que pudessem existir naquela cidade. Já vinha havia dias a pensar nisto, pois a missão de que Hereth me tinha incumbido estava cumprida, e a missão de resgatar o Fragmento de Luz do templo também, pelo que estava na hora de relatar à minha Ordem e pedir orientações para o futuro. Se ia de facto continuar com este grupo e entrar numa demanda maior, queria fazê-lo com sanção completa e o conhecimento dos meus superiores hierárquicos.

Infelizmente, os Cavaleiros de Solamnia estão a atravessar uma fase má, como em alturas anteriores da nossa História. As pessoas não confiam em nós, mais uma vez, e aqui tão perto dos extremos orientais, são os Cavaleiros de Neraka que têm mais peso. Pelo que não consegui encontrar nenhum Cavaleiro de Solamnia. No entanto, não foi um dia de todo ordinário. Num acidente estúpido, o Bahari deixou a nossa companhia. Quando caminhávamos perto do mercado, alguém deixou uma trupe inteira de animais de carga soltos e sem guarda, e foi sem aviso que os vimos correr desenfreadamente pela rua na nossa direcção. Na nossa e de todos os transeuntes. Atirei-me para o lado desviando do caminho das bestas um camponês, enquanto o Karol quase se deixava ferir para tirar o Google do caminho, mas o Bahari e o Aldor foram atropelados. Rijo como o aço, o Aldor ainda resistiu, mas estava às portas da morte quando eu o encontrei e ajudei a estabilizar. Felizmente sobreviveu, mas tal não aconteceu com o Bahari, que ficou estendido e morto no meio da rua. Só que já não era o Anão que nós conhecíamos, a sua forma era estranha e parecia um elfo extraordinariamente belo.

O Aprendiz ficou estranhamente calado sobre este assunto, e depressa tirou o Bahari da nossa vista, mas tenho a convicção de que ele afinal era um Irda, e não um Anão. Até então, o Bahari tinha sido um membro muito pouco activo do nosso grupo, mas mesmo assim não deixei de sentir pena pela sua morte. Inesperadamente, quando o tumulto acalmou, pude ver que as pessoas do mercado me agradeciam efusivamente, e ao Karol também, por termos pensado primeiro nos outros e só depois na nossa própria segurança, mas doeu-me ver o desprezo com que trataram o resto do nosso grupo. Aceitei a sua gratidão mas não abusei dela, e afastei-me silenciosamente assim que pude para comprar algumas poções de cura, com que pude reanimar o Aldor. Depois encontrei a Eruanne, a tempo de a ver ajudar uma menina perdida, que dizia que tinha de voltar ao palácio do Khan (é o título do sultão que governa toda esta região), e eu e o Aldor oferecemo-nos para a acompanhar.

Para os curiosos, a razão de a Karenya estar com tanto sono num dos dias que

não se lembra de nada é simples: faltei nessas sessões e não estava lá para ver!