Jérôme D'Alembert - Um conto

Numa altura em que estava mais ocioso do que o costume, puz-me a escrever uma pequena história protagonizada pela minha personagem de Savage Worlds of Solomon Kane. Aqui a partilho convosco...

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Veneza, Maio de 1610

 

Veneza é sempre bonita mas naquela tarde de Maio a praça de San Marco estava resplandecente. A melhor sociedade passeava-se, os galantes e as donzelas mostrando-se e observando-se, várias bandas tocando a música da moda, outras imitavam a última música de câmara que se ouvia nas cortes da Europa. Também se viam soldados, ora passeando ora sentados nas esplanadas, pertencentes aos vários regimentos da cidade, ou então condotieri, os notórios mercenários que eram quase uma das exportações de Veneza e que sem número de vezes a tinham salvo de invasão e saque.

Numa das esplanadas mais modestas, a um canto, um destes soldados sentava-se, beberricando uma grappa. Para os entendidos, tinha um uniforme das gardes royales do rei de França. Mas esses entendidos tinham de ser muito observadores, para distinguirem o uniforme com tantos remendos e coças que tinha. Apesar do calor primaveril, este homem estava envolto numa grande capa, e de vez em quando estremecia como de frio, e tossia ligeiramente. Tinha um ligeiro bigode e as faces rosadas, mas tinha a expressão de um homem que sofre.

Encheu o copo com a última porção de grappa da garrafa, levantou-o, e disse, levemente:

- Pour l’âme du bon Roi Henri.

…e bebeu-o de um trago.

Depois, avistando a criadita, chamou:

Mon enfant, traz-me mais uma destas, sê uma querida.

A criadita, muito morena e com feições que traiam uma origem levantina, acenou com um sorriso, e foi lá dentro buscar mais uma garrafa. O homem tirou um lenço do bolso e fingiu tirar um cisco do olho, enquanto limpava as lágrimas que não queria que ninguém visse. O seu querido monarca, Henrique IV de França, tinha sido assassinado. A notícia tinha chegado há pouco tempo à cidade italiana, que estava a ferver com a notícia. O nosso homem, Jérôme D’Alembert de nome, estava a fazer o seu luto e a prestar a última homenagem ao seu Rei, a quem servira há muitos anos.

Terceiro filho de um fidalgo do Midi, e assim sem qualquer esperança de herdar a fazenda paterna, fora enviado à capital com uma carta de recomendação para o capitão os gardes royales, M. Des Essarts. Ora, estava-se em plena guerra de religião. Paris ainda tremia com os horrores da noite de S. Bartolomeu. E os gardes tiveram muita acção sob o rei Henrique IV. Mas se uma guerra é terrível, uma guerra civil é-o dez vezes mais. Francês matou francês pelo pretexto de um ser católico, outro huguenote. E entre as batalhas, havia sempre um nobre que se queria apossar de uma terra, e então – arranjava maneira dos habitantes serem do inimigo. Um burguês tinha ciúmes de outro – e acusava-o de cantar salmos na língua errada. E aldeias que não se sabia bem qual seria a sua fé – mas cujos generais diziam que, bem, no Céu Deus nosso senhor lá haveria de saber quem lhe pertencia, e matavam todos.

Todas as ilusões cavalheirescas da infância se desvaneceram. Os contos de cavalaria que lhe lia sua Mãe, dos heróis cuja honra e virtude era inquestionável, mais os ensinamentos de Frei Honoré, um velho dominicano, tinham-lhe dado um enorme sentido de justiça e desejo de proteger os fracos. Mas teve de obedecer, na guerra, a ordens horríveis, atacar aldeias sem defesa e obedecer a homens que mais não queriam que encher-se de honrarias e fortunas. Mas era leal – esqueceu tudo isso e obedeceu. Não sem consequências…

Jérome pouco sofrera com a guerra, à primeira vista. Mas após a conversão de Sua Majestade ao catolicismo com o célebre “Paris vale bem uma missa” que mais de trinta anos de guerras civis religiosas, e sem se saber porquê, a saúde de Jerôme pareceu deteriorar-se. Tosses constantes, sempre com dores de cabeça e no corpo, vómitos matinais e acordar a meio da noite em pânico, só indiciavam alguma doença mortal. Procurou todos os médicos de Paris, e os melhores e honestos diziam-lhe que não tinha nada, a não ser uma saúde de ferro, e os piores e menos escrupulosos lhe vendiam mezinhas e curas milagrosas a preços que ele mal podia pagar.

Pediu para sair dos guardas, e o próprio Rei lhe deu a licença e se despediu com um valente abraço – sua majestade era extremamente terra-a-terra.

-Jérôme, meu filho – disse à despedida – terás sempre lugar ao meu serviço. Bons homens leais como tu são raros. Muitos precisam de recuperar das guerras, e não te recusarei um descanso merecido – volta quando quiseres.

Assim, Jérôme partiu, com uma pequena pensão real que pouco tempo durou. Primeiro vagueou pelo Europa, sentindo-se cada vez pior. Consultava médicos que lhe davam ou remédios horríveis ou não lhe encontravam mal nenhum. Talvez quem tenha encontrado melhor explicação tenha sido um sábio Jesuíta em Liège que lhe disse:

-Na guerra fere-se tanto o corpo como a alma. Vós saístes com o corpo intacto, mas a vossa alma é que precisa de cuidados. Sede justo e um homem de bem, rezai muito ao Senhor, que tereis alívio.

De facto, o único alívio era quando ajudava alguém. Quando corrigia alguma injustiça ou ajudava alguém desprotegido. E a doença – do corpo ou da alma – que queria da alma, dava-lhe uma coragem e valentia sem par. Pois que melhor será, definhar até a um fim horrível, acamado? Ou valentemente, em combate, como um soldado? Assim, entre a eterna busca da cura e a ajuda aos inocentes, derivou até Veneza. Onde recebeu a terrível notícia.

A rapariga, uma menina não mais de 13 ou 14 anos onde apenas se adivinhavam os encantos que os anos lhe trariam, trouxe-lhe mais uma garrafa com um sorriso inocente. Infelizmente, atraiu os olhares de um dos soldados que aí vagueava. Este chamou dois apaniguados e seguiu a rapariga para dentro da taberna. D’Alembert ficou de olho – tinha visto aquele olhar de luxúria e de devassidão em mais do que um homem. O rufia começou a lançar galanteios em mau italiano, pelo sotaque deveria ser espanhol. D’Alembert espreitou lá para dentro.

O fanfarrão, vendo que a menina não reagia, pegou nela e começou a beijá-la à força, enquanto os outros se riam. Por detrás do balcão sai a correr um rapaz, armado com um cajado quase maior que ele. Pelo tom escuro da pele e das feições, claramente da mesma família da rapariga. Com toda a força que tem, deu uma cacetada no espanhol – que como soldado experiente não se deixou surpreender e desarmou-o, dando-lhe uma estalada que o estatelou no chão. Sacou de um punhal, dizendo.

¡Turco cabrón! Como te atreves a atacar um bom Cristão? Vou mostrar-te a cor do teu fígado!

-Arretez – gritou uma voz sonora!

Uma sombra sinistra cobre a entrada da taberna, caindo sobre a cena de malfeitoria. Era D’Alembert, de punho no espadim e uma expressão de escárnio e raiva nas feições. O espanhol hesitou, os miúdos aproveitando para se esconderem atrás do balcão.

- Vós, senhor, sois um canalha e um velhaco – Disse Jérôme. – Embora doente e à morte, vereis que sou um adversário mais à vossa altura que o pobre menino que íeis esfaquear cobardemente.

- ¡Caramba! Vou mostrar-vos a não vos meterdes onde não sois chamado, señor!

Desembainhou o seu espadim e tirou a capa, pondo-se na posição de um adepto da Dextreza Verdadera, um dos estilos de esgrima mais reputados das Espanhas. Tossindo, D’Alembert tirou o espadim com a mão direita e com a esquerda empunhou a sua main gauche. Durante uns segundos entreolharam-se. Os companheiros do espanhol mostravam-se atrapalhados e apreensivos, mas não fizeram qualquer movimento para se armarem.

Para provocar, D’Alembert piscou o olho e disse:

- Monsieur, esta jovem que abordastes… não será ainda muito novinha? Reparai, nestas idades as meninas parecem-se muito com os meninos. Sereis sodomita às escondidas? Não preferis mas é violar o menininho?

O espanhol atacou com um berro de fúria e o duelo começou. Ao princípio D’Alembert teve a vantagem, mas o espanhol não era nenhum inexperiente. Notava-se nele a perícia adquirida nos campos de batalha, mais do que nos salões de esgrima. A capa enrolada à mão esquerda fazia muito bem as vezes da main gauche utilizada por Jérôme. E numa altura fatídica, conseguiu enrolar as armas de D’Alembert na capa e teve uma aberta fatal e D’Alembert percebeu que iria morrer – a ponta da espada dirigia-se para um ponto mortal no pescoço. O tempo parou para D’Alembert, tudo pareceu flutuar, a espada do espanhol a menos de uma polegada da carótida do soldado francês. É agora que se me acaba o sofrimento – Bom Rei Henrique, vou hoje ter convosco, ver-me-eis no paraíso. Mas veio também uma fúria terrível – este facínora é que me vai matar? E fica-se a rir? E os meninos, ficam à mercê dele? Antes a doença! E como por milagre desvia a cabeça. O que era um golpe mortal faz uma ferida no pescoço – feia, de acordo, mas longe de ser mortal. Com uma fúria fria, redobrou os esforços. O espanhol passou à defensiva, mas pouco lhe valeu: D’Alembert cravou a main gauche a mão que se protegia com a capa e depressa esta, antes negra, passou a escarlate. Depois o duelo terminou com uma estocada na coxa e outra no antebraço da espada. O espanhol caiu, sem sentidos. Virando-se para os outros, Jerôme exclamou:

- Tirai-me daqui este canalha! E dizei-lhe que se o encontrar, seja onde for, não serei tão brando como o sou hoje.

Os outros, assustados, pegaram no companheiro e arrastaram-no dali para fora.

Os meninos apareceram, seguidos pelos pais, e foram a correr com Jérôme, que após a saída dos mercenários, teve um ataque de tosse e se sentou, cambaleando a uma mesa.

O Pai, cuja origem turca era traída pelas feições, disse num italiano macarrónico:

- Obrigado, senhor pela vida do meu filho e a honra da minha filha. Infelizmente estava no primeiro andar e não pude intervir, mas que combate! Fostes magnifico.

-A menina disse:

- Como pudemos agradecer-vos?

D’Alembert, virando-se para os meninos, disse:

- Eh bien, les enfants, podeis prestar-me um seviço. Conheceis a giudecca?

Eles acenaram com a cabeça.

- Bon! Podeis conduzir-me até lá. Pode ser que, Melchisedek, o famoso médico judeu, tenha uma cura para o terrível mal que me aflige…

 

Muito interessante! Gostei da alusão ao espanhol- a melhor maneira de enfurecer alguém nesse período.

 

" Robot durante o dia, vegetal durante a noite"

Belo trabalho. Um pequeno conto, mas pleno de interesse. As várias referências que enquadram historicamente a acção ficaram manifestamente boas.

Bravo!

Smile

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Embarassed Obrigado... Agora a olhar para o conto, acho que ganhava com mais uma revisão. Mas foi assim que saiu e que aqui o puz, e então é assim que fica.

Fiquem bem,

Verbus.

Belo aquecimento para o jogo - embora este tenha de ficar adiado mais umas semanas.

Mas, no entretanto, uma sugestão: Porque não tentas «traduzir» a história em para os termos do SWOSK? Como é que te parece que esta cena se desenvolvia com este sistema?

Sérgio Mascarenhas