Kult - A Morte é Apenas o Início

O que se segue não é bem uma review, uma vez que, enquanto Kultista assumido sou totalmente parcial em relação ao jogo. Trata-se antes de uma tentativa de explicar o que é Kult, já “postada” noutro fórum, mas que repito aqui uma vez que (parece), ainda há muita gente interessada no jogo apesar de ter sido tão maltratado pela editora que actualmente o publica (ou, melhor dizendo, o publicava), a francesa 7éme Cercle.

Definir o conceito de Kult é muito complexo, uma vez que o jogo tem a característica invulgar de abarcar uma quantidade enorme de sub-géneros (invulgar porque já vi adaptações de fãs de Kult a tudo, desde cenários históricos a futuristas). É provável que tenha sido pensado para ser flexível a este ponto, mas também é possível que muito do que hoje é Kult se deve à legião de Kultistas fanáticos em que me incluo. Ajuda começar pelos slogans: Reality is Lie, Once Men Were Gods e, o mais popular, Death is Only the Beginning. De uma forma geral, Kult aproveita conceitos judaicos e cabalistas (a Árvore da Vida, os dez Sefirot), cruza-os com conceitos Gnósticos (o Demiurgo é o criador - provavelmente não “O Criador” -, mas pelo menos o criador do nosso plano de existência, o Elysium) e depois atira para o meio disto tudo figuras e conceitos de mitologias variadas, desde a cristã, até à azteca, passando pelos mitos dos nativos americanos, entre outros. Algumas das principais inspirações ficcionais do Kult: os livros de Clive Barker (especialmente o Hellbound Heart no qual o filme Hellraiser foi inspirado), os filmes de David Lynch e, claro, a série Twin Peaks. Estes são os principais, mas um Kultista rapidamente encontra outras fontes de inspiração no cinema e literatura.

Existem três grandes planos de existência: Metropolis, a cidade dos Archons (que correspondem aos dez Sefirot) e do seu líder, o Demiurgo, a cidade primeva a partir da qual todas as outras foram copiadas; o Inferno, lar da outra face da moeda do Demiurgo, Astaroth, e dos seus dez Angels of Death, as sombras (ainda mais) negras dos Archons e o Elysium, a prisão onde o Homem foi agrilhoado pelo Demiurgo. Agrilhoado porquê? O costume, porque em tempos a raça humana era poderosa, mais poderosa ainda dos que os Seraph, servos do Demiurgo, e este último (que talvez até tenha sido em tempos humano, não se sabe) atraiçou-os, roubou-lhes todo o poder e lançou-os num mundo das ilusões.

Dito assim parece uma enorme confusão, mas na prática as coisas fazem sentido. Porquê? Porque a parte de Kult a que referi até aqui é a mais abstracta e que raramente surgirá em jogo, se é que alguma vez surge… É verdade que os Homens, em tempos, foram deuses, mas tudo isso lhes foi retirado quando o Demiurgo “inventou” a morte. E aqui chegamos ao segundo passo. Na realidade a morte não existe, o Homem nunca morre: pode ficar no Limbo, pode ir parar ao Inferno (se em vida acreditou que era esse o seu destino), pode ser capturado num Purgatório pessoal. Ou então, pode simplesmente reencarnar de imediato, mas reencarnar algum dia é uma certeza absoluta. O segredo do Demiurgo para manter o Homem vai mais longe, porque, independentemente de onde tenha andado a sua Alma antes de reencarnar, quando regressa, regressa sem memórias da vida anterior, ou de qualquer uma das vidas anteriores. Assim se mantém a grande Mentira, o Elysium. Para manter o Homem bem comportado na sua prisão, existem os cães de fila do Demiurgo, os Lictors e os muitos servos destes, entre os quais se destacam os Azghouls (escravos do Homem em tempos idos que se deleitam com o papel de torturadores).

Mas tudo isto surge nas sombras, porque a Ilusão mantém uma fachada de normalidade que faz o mundo parecer aquilo que ele é na nossa realidade. É verdade que um Lictor é uma criatura grotesca de três metros de altura, pálida e obesa com um abdómen translúcido através do qual se pode observar os seus órgãos internos em funcionamento, que um Razide (não vou entrar pela explicação do que é um Razide senão nunca mais acabo, basta dizer que é uma espécie de demónio) é um ser tecno-orgânico, com pedaços de vidro e metal embutidos no seu corpo, mas o comum dos mortais vê-os a todos como outras pessoas.

A “máquina” que assegurava a manutenção da Ilusão funcionava na perfeição (ou quase) até finais do século XIX (bom, o tempo também é uma Ilusão, assim como o espaço, mas enfim, o nosso século XIX) quando o Demiurgo desapareceu… Parte dos Archons não eram propriamente fiéis e, nas lutas internas que se seguiram, três deles foram eliminados. Astaroth, que na boa tradição da tese+antítise=síntese, não pode existir sem o seu oposto, partiu em busca do Demiurgo, mas nunca o encontrou. Os Angels of Death aproveitaram a confusão para entrar em guerra com os Archons e, no meio disto tudo, a Ilusão que prende o Homem no Elysium já não é uma máquina perfeita e há quem tenha vislumbres da verdadeira Realidade. Os esquizofrénicos têm-nos, pessoas submetidas a violentos choques emocionais ou traumas físicos também o têm. Abrem-se brechas na Ilusão em campos de batalha, hospícios, prisões, nos antros de ‘serial killers’, em locais de culto ou locais onde ocorreram acidentes.

Nas cidades é onde, naturalmente, existem mais destas brechas na Ilusão. E é por isso que Kult é um jogo eminentemente urbano. E o que acontece nessas situações? Muita coisa pode acontecer. Um sujeito pode ter um breve vislumbre de uma criatura inumana que minutos antes aparentava ser uma pessoa vulgar, pode ver ou mesmo entrar numa rua de Metropolis, pode observar uma sala de tortura do Inferno ou até revelar alguns dos seus poderes adormecidos. Ou pode simplesmente julgar que acabou de ser vítima de uma ilusão e continuar a sua vida cinzenta.

Os personagens jogadores são aqueles que, expostos de alguma forma à Verdade, têm a coragem de não inventar uma explicação racional para poderem continuar a viver a sua vidinha ilusória. Isto é o Kult puro e duro, mas Kult também inclui o oculto mais tradicional: a magia (na realidade um subterfúgio do Homem para recuperar uma ínfima parte dos poderes que foram seus), as ciências ocultas, criaturas sobrenaturais como vampiros, lobisomens, anjos e demónios. Como disse no princípio desta já longa exposição, Kult pode ser muita coisa…

O importante a ter em conta, para além de tudo isto, é que um jogo particularmente negro e decadente (é de recordar que foi concebido por suecos), onde explorar o lado mais obscuro da alma de cada personagem, além de não ser mau, até é o mais comum. Aqui, quando (supostamente) se enlouquece não se deita fora a folha de personagem - é nesse momento que as coisas começam a tornar-se mais interessantes! Ou não… Mas isso já é uma escolha do jogador - qual dos dois caminhos é que vai decidir percorrer em direcção à Iluminação: a Dark Path (sadismo, violência, sexo sem barreiras nem limites, experimentação de todo o tipo de prazeres/dor) ou a Light Path (a via da santidade, que torna o personagem quase tão insano e bizarro como a outra).

Também há quem opte por não percorrer caminho nenhum e manter o seu equilíbrio, talvez fugir daquilo que já descobriu e tentar não saber mais. Claro que quando se começa por saber alguma coisa é difícil escapar…

Quanto às mecânicas, pouco há dizer que seja particularmente relevante para quem está interessado no jogo. Kult é um jogo dos anos 90 e é um produto do seu tempo. Os personagens têm atributos, skills, vantagens e desvantagens, há as típicas regras de combate bastante desenvolvidas (na opinião de muitos demasiado desenvolvidas para o tipo de jogo que é) e as infames (não na minha opinião, diga-se de passagem) regras de afogamento e afins. A primeira edição norte-americana (que até certo ponto corresponde ao original sueco – não sei bem qual é o ponto porque sueco não é língua que se apresente) é a mais detalhada em termos de mecânicas, aligeiradas na segunda edição norte-americana (uma verdadeira obra de arte no que diz respeito à ilustração e grafismo) e depois recuperadas na mais recente edição (em inglês, mas produzida em França), com o subtítulo Beyond the Veil.

Não querendo aprofundar a questão das mecânicas, destaco a brilhante forma como a sanidade mental (ou, neste caso, o chamado Mental Balance) foi tratada. Os personagens envolvidos com o sobrenatural arriscam-se rapidamente a perder o equilíbrio (se é que começaram com ele) e a enveredar por uma espiral de decadência, afundando-se cada vez mais no negrume da própria alma humana (coisa que se manifesta num Mental Balance negativo e em desvantagens mentais acrescentadas). Também podem aspirar à iluminação, percorrendo a Light Path, mas… Num jogo destes quem é que quer ser santo?

[quote=Nietzsche] Num jogo destes quem é que quer ser santo?[/quote]

Eu não! Quando jogamos???


"Don't hesitate, don't apologise - it's a sign of weakness."
John Ford, cineasta

Eu estou sempre a jogar Kult, mesmo quando não estou!

Perdeste!

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Alguém muito sábio disse uma vez: "So, Trebek, we meet again! The game's afoot!"