Folium XXI
Finalmente, já perto da alvorada, chegámos à vista da muralha de pedra, arruinada mas ainda de pé na zona que dava para o caminho que seguíramos: o portão ocidental. O portão estava ainda em razoáveis condições, e parecia ter sido imponente em tempos, mas agora não protegia nada: um pouco mais ao lado, a muralha caía e se o portão não estivesse efectivamente aberto, teríamos facilmente saltado o muro.
Kendermore é como eu esperava: uma ruína, um caos absoluto resultante de uma destruição cuja potência mal posso imaginar. É bem pior do que o pior que vimos em Port Balifor, aqui não pode haver vida, tenho a certeza! Olho em volta e vejo tudo queimado, tudo feito em cinzas. Não sobra nada que pareça natural, que pareça ter vivido em tempos. Estou aqui sentada numa pedra, possivelmente parte de uma parede em tempos, e não consigo parar de chorar. Podem pensar que é pelo Laundo e pelo Google, mas não. Choro por toda a gente que aqui viveu, que em tempos aqui foi feliz e que foi dizimada de forma tão cruel. Não há uma centelha de vida, um raio de verde que seja que me faça ter esperança na recuperação desta cidade. Kendermore está morta, morta e assassinada há muito, muito tempo. Completamente obliterada do mapa pela potência do Dragão!
O céu já clareia, mas ainda não vejo o sol. É como se os próprios deuses tivessem vergonha do que aqui se passou, e não se quisessem mostrar para enfrentar a minha dor e a minha raiva. Habbakuk, Habbakuk... como é que isto foi possível? Poderei alguma vez fazer alguma coisa por Kendermore? Poderei redimir esta destruição?
Já andámos um bocado por Kendermore à procura de um sítio para acampar. O dia está quase aí e ainda não temos onde ficar. Vagueámos pelas ruas até darmos de caras com uma torre de madeira que tremia um bocado, assente sobre uma base de pedra. Decidimos entrar, mas ela desmoronou-se sobre nós. O Google foi o único que não entrou, e ficou a ver aquelas pedras e madeira a desabar e enterrar-nos lá dentro. Eu também fiquei lá enterrada, mas a Eruanne e o Google, e talvez o Karol, puxaram-me para fora. Depois disso, ajudei a desenterrar os outros. O Aldor estava inconsciente, e o Laundo morto. Não havia nada a fazer pelo Laundo, e de certa forma, tinha cumprido o papel que lhe tinha sido atribuído: tinha-nos servido de guia até Kendermore, e essa era no fundo a única promessa que nos tinha feito. E agora, aqui, parte para o outro mundo com pelo menos a certeza da missão cumprida. Mas continua a ser uma partida cruel, mais ainda pelo inútil da situação.
Uma nota breve para o Aprendiz. Realmente, ele está mais sociável, e já sugeriu partilhar por todos o que o Laundo trazia que nos pudesse dar jeito. Fico contente com esta evolução. O Karol ofereceu-me a espada dele, mas eu recusei-a. Não poderia fazer nada com ela, e acabámos por a deixar marcando a sua campa.
Ainda mal nos tínhamos recuperado do choque do Laundo, enquanto decidíamos por onde seguir, alguns de nós avistaram um lagarto que vinha na nossa direcção: um bicho com oito patas mas curto, de aspecto robusto. Mal nós sabíamos o mal que ali se escondia, e a potência do seu olhar surpreendeu-nos a todos.
O Karol disparou logo na sua direcção, e eu desta vez achei mais prudente atacar de longe. Descarreguei algumas setas com o novo arco que apanhei nos nossos combates, ainda sem saber o que o monstro era capaz de fazer. Foi só durante o combate que o Aprendiz nos avisou para não o olharmos nos olhos, e então passei a disparar olhando-lhe mais para a cauda.
Acredito que o Google também o tenha feito, mas mesmo assim o animal conseguiu dirigir-lhe o seu olhar com uma força destruidora. O pobre Kender não resistiu, e o seu corpo tornou-se pedra imediatamente. Foi só depois que o Aldor conseguiu tapar a cabeça do lagarto com o seu cobertor, enquanto eu continuei a disparar cheia de raiva até o ver cair sobre as suas patas. Logo depois, a Eruanne chegou-se à beira dele e cortou-lhe a cabeça, só para ter a certeza.
Pobre Google, a segunda baixa em tão poucos minutos. O sol ainda demorava, e o Aldor anunciou que estava sem mais feitiços. O Aprendiz também não era capaz de reverter o Google para o seu estado normal, e nós decidimo-nos a procurar um lugar onde passar o dia. Seguimos até ao fim da rua à direita daquela que havíamos seguido até à torre, passando por três ruas à esquerda, até que num beco encontrámos algumas casas em aparentes condições. O Aprendiz, pelo menos, afiançou-nos que uma delas não cairia sobre nós. Entrámos, à espera do dia, para que o Aldor pudesse rezar e recuperar a sua magia. Enquanto isso, o Aprendiz, na sua forma de ogre, foi buscar o Google e arrumou-o a um canto da casa, para que um dia, se voltarmos, o possamos restaurar à vida. Pobre Kender, como lhe deve ser insuportável esta prisão!
Estávamos finalmente abrigados do sol, mas ao contrário do que esperávamos, não estávamos em segurança: dois bichos de aspecto de insecto, mas enormes (do nosso tamanho, quase!) surgiram do chão, esburacando até chegarem à superfície. Atacaram-nos sem aviso cortando-nos os movimentos dentro da casa. O Aldor foi atingido por um deles e de novo ficou às portas da morte, e só a muito custo o Karol conseguiu reagir rapidamente e tirá-lo da casa, levando-o para a segurança do exterior. Eu, a Eruanne e o Aprendiz ficámos para lutar, mas permitimos que um dos insectos (Ankhegs) bloqueasse a saída à elfa. Lá fora, ouvíamos o Aldor em agonia e o Karol quase em desespero por não saber o que fazer com ele. A Eruanne podia ajudá-lo com a sua varinha, e eu podia tentar estabilizá-lo, mas eu era necessária para eliminar a ameaça, mais que tudo. Enquanto tentava o mais depressa possível matar estas aberrações, sentia a vida do nosso clérigo a esvair-se por entre as nossas mãos, a perder-se a cada segundo que passava, a cada estocada que eu falhava. Felizmente, o Aprendiz conseguiu produzir umas quantas imagens falsas de si mesmo e, em forma de ogre, teve a força suficiente para empurrar o Ankheg que a Eruanne estava a atacar até à parede, deixando à elfa espaço suficiente para sair.
Sei agora que quando ela lá chegou, o Karol já tinha encontrado uma poção entre os seus pertences e que a tinha dado ao Aldor: assim, a Eruanne já só teve de lhe restaurar os sentidos quando ele já não estava em perigo de vida. Eu e o aprendiz derrotámos os dois Ankhegs, e finalmente pudemos descansar.
Olhei em volta: o sol estava quase a nascer. Por cima de nós, ele seria o nosso pior inimigo, mas por baixo, o chão não era mais seguro, e já o tinha demonstrado. Achámos então que podíamos aproveitar as pedras espalhadas pelas ruínas em volta para calcetar o chão da casa que tínhamos escolhido para nos abrigarmos: o nosso Ogre lá foi e com a sua força tremenda, em pouco tempo tínhamos o chão seguro. Além disso, ele encontrou uma pedra para selar a entrada e nos proteger de qualquer inimigo diurno.
Finalmente, chegou o Sol. O Aldor fez as suas preces e curou-nos a todos. Estávamos bem castigados, e numa situação periclitante, mas agora já temos mais forças para o resto do caminho.
Estou sentada a um canto, deprimida, enquanto escrevo estas linhas e olho a estátua do Google. Não me apetece fazer nada, só espero que o dia passe e que o amanhã nos traga melhor sorte. Nem sei para onde havemos de ir: esta cidade é um labirinto e mal sabemos o que viemos cá fazer...