Na minha colecção existem seis jogos começados por N. Dois fillers de cartas, No Thanks! e Nicht die Bohne!, sendo que este último consta apenas porque conheço quem goste de o jogar embora a mim não me agrade. Também consta o Nottingham, de Uwe Rosenberg, que não é bem um filler, mas também não é particularmente complexo. De tabuleiro, propriamente ditos, teremos Notre Dame e Nexus Ops. Ambos interessantes.
Mas escolhi um outro para vos falar. Uma obra do criador de Magic:The Gathering, também um CCG, e uma clara demonstração que nem sempre o que de melhor se faz obtém mais sucesso...
Netrunner
Designer: Richard Garfield
Arte: Vários
Edição analisada: Wizards of the Coast (1996)
página no BGG
Netrunner é um jogo de cartas que se desenvolve num ambiente CyberPunk, género eminentemente literário e pós-moderno celebrizado por William Gibson com o seu livro "Neuromancer" mas presente em obras tão diversas como "Dune" de Frank Herbert, "Foundation" de Isaac Asimov e a adaptação ao cinema de "Do Androids dream of electric sheep?" de Philip K. Dick, o famoso Blade Runner.
Neste ambiente é frequente encontrar duelos entre (anti)heróis que usam a tecnologia como arma de combater o domínio de mega conglomerados financeiros ou industriais sobre o indivíduo e a individualidade. Em Netrunner é precisamente isso que ocorre.
Um dos jogadores terá o papel de Runner e o outro de Corporation. O primeiro tenta aceder a informação privilegiada, na forma de Agendas e "libertá-la" enquanto o segundo tenta proteger essa mesma informação até cumprir essas Agendas. Ambos usam um baralho de cartas específico para o seu papel e a génese literária do jogo está tão presente que uma partida pode ser escrita como um relato do ponto de vista dos dois oponentes sem dificuldade e o próprio livro de regras está em parte escrito dessa forma com a Corporation a referir-se a si mesma como "Nós" e ao Runner como "tu".
Componentes
Um starter set de Netrunner traz dois baralhos de cartas, um para o Runner outro para a Corporation e o livro de regras. Mais nada. Para jogar será conveniente ter alguns marcadores disponíveis para representarem dinheiro ou outros factores importantes, contas de vidro, moedas, etc...
As cartas são similares às de Magic: The Gathering contendo várias áreas, incluindo a ilustração. As ilustrações são boas e ajudam a manter o ambiente presente. A iconografia é boa, recorrendo a símbolos algo familiares a quem se relaciona com a informática (balde do lixo tipo Mac OS clássico, tecla de enter para Acção, etc...)
O livro de regras é de boa qualidade, como bastantes ilustrações e uma dimensão mais generosa que o habitual em CCGs uma vez que cada página tem a área de duas cartas devido à caixa de starter trazer dois baralhos.
Sendo um CCG, aquilo que se pode pedir é cartas de boa qualidade e pouco mais. Netrunner não perde para nenhum dos seus concorrentes mais conhecidos.
Pontuação: 5/5
Regras
A minha experiência com CCGs aponta para que as regras destes jogos sejam sempre um pouco densas nos primeiros contactos. Aprendi MtG sozinho, com um livro de regras de 4ª Edição, Vampire: The Eternal Struggle também e Netrunner, idem.
Este jogo é um pouco mais complexo que MtG. Há mais que apreender pois, ao contrário da maioria dos CCG, este é um jogo assimétrico. Não estamos perante um duelo de iguais, com procedimentos e regras que se aplicam da mesma forma aos dois jogadores. Aqui, jogar como Runner é completamente diferente de jogar como Corporation. Os recursos são diferentes, as opções são diferentes a própria atitude perante o jogo tem que ser diferente.
Nestas circunstâncias, aprender sozinho implica mais atenção, mais esforço. É necessário acompanhar os exemplos com as próprias cartas para que a estrutura e a forma como os dois turnos, Runner e Corporation, encaixam faça sentido e aquele aspecto narrativo do jogo venha ao de cima e assim se faça o click necessário.
Tudo isto para dizer que o livro de regras se esforça por transmitir tudo e por facilitar a compreensão mas aqui e ali poderia ser melhor, claro, mas penso que este jogo só se tornaria fácil de aprender com um vídeo...
Daí que não tente dar uma ideia do conteúdo das regras como fiz noutras análises / críticas. Seria moroso e inconsequente.
Vou apenas tentar dar uma ideia geral.
A Corporation tem no seu baralho cartas de "Agenda". Estas cartas têm um valor de dificuldade, equivalente a pontos. O objectivo da Corporation é concluir 7 pontos de Agenda com sucesso. O objectivo do Runner é libertar Agendas cujos total de pontos seja 7.
O jogador que interpreta o papel de Corporation terá que colocar as Agendas em Data Forts e depois ir avançando essa Agenda até atingir o nível de dificuldade. Avançar uma agenda é colocar um dos marcadores, representando assim investimento feito pela Corporation.
O Runner tenta aceder a estes Data Forts fazendo Runs sobre os mesmos. Caso consiga aceder, pode "libertar" a Agenda, ganhando os pontos equivalentes à dificuldade da mesma.
Claro que a Corporation terá que tentar proteger os seus Data Forts para dificultar o acesso do Runner. Para isso poderá colocar ICE (Intrusion Countermeasures Electronics) à frente dos Data Forts. O Runner terá que os ultrapassar para aceder.
O Runner dispõe de programas e hardware que usará para tentar evitar ou desactivar o ICE. Estes programas também lhe custam dinheiro e ocupam espaços limitados (memória). Para obter esse dinheiro, o Runner tem vários recursos e aliados. Ao fazer uma Run a um Data Fort, o Runner está ligado fisicamente à rede. Nestas circunstância pode sofrer danos ou ser detectado.
Uma forma alternativa de a Corporation vencer é eliminando o Runner. Se instalar ICE com essa capacidade, a Corporation pode infligir dano ao cérebro do Runner, num determinado ponto este dano pode ser fatal. Também pode tentar detectar o Runner e procurar descobrir a sua localização física. Caso o consiga, pode recorrer a meios mais directos de "ataque"...
Pontuação: 4/5
Jogabilidade
Uma partida de Netrunner pode ser algo demorada. Não se trata de um jogo tão rápido como habitual nos CCG. Também é um jogo exclusivamente para dois. Não vejo grande forma de se jogar Netrunner com mais, como acontece com outros CCG, alguns dos quais são mesmo mais interessantes em grupos de cinco ou seis jogadores.
Assim, mesmo sendo um jogo muito agradável de jogar, apesar de algo complexo, com uma envolvência temática grande e um factor narrativo marcado, tem alguma dificuldade em ir à mesa. Não sendo bem conhecido de ambos os jogadores vai normalmente obrigar a algumas clarificações de regras e com isso perder um pouco.
Resumindo, a experiência é boa, mesmo muito boa, mas exige algum compromisso e dedicação.
Equilíbrio
Sendo um jogo assimétrico, o equilíbrio é difícil. Pelo que tenho lido, uma vez que não tenho assim tantas partidas de Netrunner jogadas, o jogo pende para um ou outro lado de forma diferente ao longo do tempo. Se o Runner conseguir ser rápido e aceder a Data Forts ainda pouco protegidos, pode ser mais fácil para ele. Por outro lado, quanto mais tempo for passando, mais forte se irá tornando a defesa da Corporation.
Tendo em conta o ambiente do jogo e a diferente situação dos jogadores, este aparente desequilíbrio faz todo o sentido.
Sorte
Alguma, sim. É um jogo de cartas, afinal. Posto isto, é importante para um jogador pensar bem na sua jogada. O número de acções por turno é reduzido para ambos, mais para a Corporação. Por outro lado, os recursos também são mais difíceis de obter pelo Runner. Daí que, tanto um como outro, tenham que decidir bem a altura em que irão tomar certas acções, colocar certas cartas em jogo.
Pontuação: 3/5
Estratégia / Táctica
A minha opinião acerca do que é estratégia e do que é táctica leva-me a dizer que o aspecto estratégico nos CCGs reside, essencialmente, na construção do baralho a ser usado. A parte em que esse baralho é confrontado com outro será uma parte mais táctica em que o jogador, conhecendo o seu baralho, saberá quais as combinações de cartas mais vantajosas, qual a possibilidade de enfrentar uma ou outra carta jogada pelo adversário, enfim, deverá saber como ir usando, poupando ou combinando as cartas que lhe vão saindo de forma a não prejudicar a sua estratégia global mas ao mesmo tempo ir adaptando o seu jogo às circunstâncias.
Netrunner já não é produzido. Já não saem expansões e portanto as possibilidades de construção de baralhos diferentes são algo limitadas. Se por um lado isto retira algumas possibilidades estratégicas, por outro apresenta-nos um CCG que já não apresenta o principal problema dos CCG, a constante necessidade de adquirir novas cartas para ir acompanhando a evolução do mesmo.
Conclusão
Tentei, ao longo desta análise, recorrer o menos possível a comparações com outros jogos do mesmo género. Interessa-me mais tentar falar dos méritos de Netrunner por si só.
Acontece porém que este jogo foi criado pelo mesmo autor daquele que é a referência para muitos de nós em termos de CCG, Magic: The Gathering. Ter esse ponto de referência e não o usar será, em certa medida um desperdício.
Olhando para o Magic sem o aspecto comercial que, tal como a muitos outros me afastou dele, posso ver que é uma criação brilhante em que tudo é manipulável e as possibilidades de criação são quase infinitas, daí a sua possibilidade de expansão, razão para o seu invejável sucesso comercial e, paradoxalmente, também para o meu abandono do mesmo.
Netrunner é muito diferente, em certa medida, de Magic. A assimetria dos papeis dos jogadores distingue-o logo. O ambiente está mais presente e integrado com as mecânicas, indo além do que se passa com Magic em que, por vezes, certas séries tentam incutir um ambiente diferente, mas acabam por ser um pouco mais do mesmo e perder esse "tema" quando olhamos para lá das ilustrações.
Não vou dizer que Netrunner é melhor que Magic, nem o contrário. Mas Netrunner tem a vantagem de estar cristalizado, de não ter o mesmo potencial de ser um sorvedouro de dinheiro.
Além disso, ao jogar Netrunner, tenho aquela sensação de estar a viver uma pequena história, um conto curto de ficção científica. Não jogo uma partida em quinze minutos, mas isso acaba por ser parte do interesse.
A verdade é que me dá mais vontade de voltar a pegar no starter set que tenho, nos meros dois baralhos de Netrunner e jogar uma partida, que fazer o mesmo com o par de milhar de cartas de Magic que ainda guardo...
Pontuação Geral: 12/15
