Num outro fórum eu disse, «A estrutura do dungeon clássico é uma estrutura de drama de jogo bem concebida e bem realizada, daí a sua persistência».
O João Mariano perguntou, «Podias explicar melhor esta afirmação? Porque é que a dungeon é uma estrutura de drama bem concebida e bem realizada?».
Bem, isso prende-se com umas teorias minhas sobre o rpg enquanto jogo, cruzadas com umas teorias não menos minhas sobre estruturas dramáticas. Vou tentar resumir mas noutro fórum que não cabe neste.
Basicamente uma estrutura dramática baseia-se em duas componentes (se seguirmos as noções clássicas de dramaturgia que na nossa tradição remontam a Aristóteles...): a cena e o enredo. Quer a cena quer o enredo decompõem-se em 3 actos (apresentação e definição do problema, desenvolvimento com conflitos constantes, resolução). Há imensa bibliografia sobre este assunto. Uma das questões centrais dos rpgs é procurarem atingir a «qualidade» narrativa de um drama (no sentido amplo aplicável a cinema, teatro, bd, etc.) num contexto aberto e participado por amadores com qualidades dramáticas muito variáveis (para não dizer medianas ou mediocres, como é normal em qualquer população).
Acontece que o drama narrativo não é o único tipo de drama possível. Há também o drama «desportivo» ou o jogo. Não vou entrar agora nas diferenças entre um tipo de drama e o outro. (São conceitos meus e sei que muita gente me daria na cabeça com um bloco de mármore por chamar drama ao desporto e ao jogo... Pouco importa para a discussão presente.) O jogo pode ser de cena única (uns tipos juntam-se na praia para jogar uma futebolada - o jogo é a cena do drama desportivo) ou de uma acumulação de cenas (um campeonato de futebol - o campeonato ou torneio é o enredo do drama desportivo).
Eu penso que o dungeon colhe elementos de ambos os tipos de drama. Um bom dungeon faz isso de forma harmoniosa e, dessa forma, consegue resultar em algo de diferente e que vale por si. Vejamos...
O cenário corresponde ao enredo do drama narrativo e ao campeonato do drama desportivo. Cada encontro no cenário corresponde à cena ou ao jogo.
Por um lado, o cenário de dungeon tem elementos que o aproximam do enredo, como o facto de haver um conjunto de obstáculos pré-determinado, organizados num crescente dramático. O encontro também tem aspectos que o aproximam da cena de um drama narrativo, como sejam a variabilidade de participantes, locais, tempos, etc.
Mas o cenário de dungeon tem também aspectos que o aproximam do torneio competitivo, como o facto de normalmente cada cenário ser independente dos que o antecedem e dos que lhe sucedem, com limitada persistência dos adversários. E pelo seu lado, o encontro do dungeon tem elementos que o aproximam do jogo competitivo, como o facto de cada encontro ter resultado aberto e dependente da prestação dos participantes.
A natureza do dungeon garante um elevado grau de linearidade e consistência estrutural ao rpg, assegurando que o jogo progride num sentido preciso. Isso correspnde à linearidade inerente a uma história narrada ou à linearidade inerente a uma estrutura de jogo assente em campeonato ou torneio.
Dois aspectos também muito bem conseguidos no caso específico do D&D:
A definição das personagens com base em paradigmas consistentes (os «roles» ou classes). Ela corresponde às especializações que encontramos em desportos colectivos (atacante, defesa, etc.); mas também corresponde aos papéis estereótipados do novelismo comercial e de entertenimento.
O sistema de hit points. Antes de se envolver no design do DD3 o Jonathan Tweet escreveu uma excelente reflexão comparativa entre o sistema de hp do RQ e o do DD, defendendo este. Embora eu pense que o RQ tem as suas virtudes, o que ele diz do DD é spot on. O sistema de hp está para o DD como o banco está para uma equipa de futebol ou como o arsenal de recursos de escrita dramática estão para o drama narrativo: permite gerir o drama do princípio ao fim, assegurando que este não para a meio por falta de folgo.
O rpg tem os seus problemas ou dificuldades estruturais: o primeiro prende-se com o primeiro acto. Infelizmente muito dungeon trata este mais em termos competitivos do que em termos narrativos (o sempre eterno encontro numa taberna...), ora devia aqui fazer-se uma síntese produtiva. O outro prende-se com o momento da resolução do cenário, o turning point entre o segundo e o terceiro actos. Mais uma vez, neste domínio o dungeon tende a aproximar-se mais do drama desportivo do que do drama narrativo. Também aqui é precisa uma síntese criadora mais adequada.
É por tudo isto que eu digo que a estrutura de dungeon clássica é muito conseguida. Como é evidente, ela não é, só por si, o rpg (assim como a estrutura dramática não é a história ou a estrutura competitiva não é a competição). A estrutura de dungeon pode ser mal aplicada, havendo maus dungeons como há maus filmes e maus campeonatos (que o diga o meu Sporting...).
Por outro lado, eu penso que a estrutura do dungeon não é a única estrutura possível para o rpg, daí pensar que há todo um trabalho de análise a fazer que:
Faça um estudo aturado da estrutura e das técnicas do drama narrativo e veja o que é aplicável ao rpg.
Faça um estudo aturado da estrutura e das técnicas dos dramas desportivos e veja o que é aplicável ao rpg.
Considere as variantes dentro de cada um daqueles tipos de drama.
Reflicta sobre o que é específico do rpg.
E alcance uma proposta consistente de estrutura dramática do rpg.
Coisa simples, afinal...
Sérgio Mascarenhas