No outro dia, estava eu a tratar de umas papeladas no escritório onde trabalho part-time, quando aparece o boss e sector técnico, o meu tio. Depois dos tipicos olás, beijinhos e abraços, continuo a trabalhar e quando dou por ela, e num hábito muito português, o meu tio tinha-se posto a folhear o livro que eu andava a ler nessa altura, "Os Guardiões da Noite" (livro russo de paranormal no mundo presente, que deu origem a um filme "Nightwatch"), e que estava pousado ao lado da minha mala.
Vira-se o meu tio para mim e prega-me o discurso que já ouvi tanta gente dar aos filhos\afilhados\sobrinhos\jovens em geral. Penso que o meu tio estava a tentar meter conversa, porque mais ninguém na minha familia alguma vez se atreveu a dizer-me o que ele me disse, sobretudo porque a minha licenciatura roda à volta disso mesmo:
"Tu devias era ler livros 'a sério´."
Fiquei tão surpreendida, que foi só mesmo por acaso que não me deu para rir à gargalhada. No entanto, a resposta saiu-me sem sequer pensar:
"Ò tio. eu quero é que me deixem. Livros a sério já eu li montes, mais que tu, e cada vez gosto mais de livros 'a brincar'."
E é verdade, só no meu curso tive 6 cadeiras anuais de literatura e 4 anuais de cultura que incluem sempre uma componente de literatura. Isto para não contar os livros que todas os anos as cadeiras de linguas exigem que se leiam para fazer a oral nem os livros que tive que ler no liceu por ser aluna de humanidades. Li Kafka, Wagner, Eça de Queiroz, Pessoa, Camões e Homero. Li o Fausto de Goethe no seu alemão arcaico original, Thomas Mann no seu alemão moderno original, incontáveis peças de Shakespear no seu original ingês. Li da velha guarda como Brontë e Dickens. Li da nova guarda como Nietzsche, Poe, Steinbeck e Hemingway. Li modernos como Italo Calvino e Umberto Eco. Li contos, li novelas, li peças de teatro, e ainda consegui ler 4 epopeias completas. Li quilometros de poesia de portugueses, alemães e ingleses e escrevi centenas de páginas a fazer análises extensivas de poemas individuais, entre exames, testes e trabalhos de casa. Uma vez, porque estava aborrecida, deu-me para ler a Biblia toda. Estou neste momento a ler o livro para a oral de alemão 4 -- e que só na fase de preparação exigiu que investigasse o mito grego de Orestes e fizesse uma analise profunda do Islão e do Islamismo. Li, em 20 e tais anos de vida, mais livros "a sério" que a maioria das pessoas lê em toda a sua vida.
E só vos digo... já chega.
Já li os clássicos, agora venham os livros para meninos, cheios de fantasias e coisas que não existem. Estou farta de retratos da sociedade, analises sublimes da realidade ou reaproveitamento dos velhos mitos. Quero sonhar. Quero ser livre para ler sobre mundos com ceus cor de rosa e flores canibais. Quero ler livros sobre viajantes no tempo, sobre mundos que nunca existiram mas podiam existir. Quero fantasia e ficção. Não sou uma pessoa melhor por ter lido literatura, mas sou uma pessoa mais segura - porque sei o que quero e mereci o meu cantinho ao sol. Mereci o direito para me rir na cara de quem me diz que os livros que leio são para crianças e que devia ler coisas 'a sério'.
E porque é que gosto destes mundos estranhos, que podiam ser o nosso mas não são? Porque sou uma roleplayer. Porque cada mundo novo em que caminho ao abrir as páginas de um bom livro 'a brincar' me faz querer fazer parte dele. Porque podem não ser são descrições e/ou considerações da realidade e da sociedade, magnificas certamente, mas estéreis, onde não há lugar para mim.
Harrison, Hearn, Rowling, Rowland, Evanovich, Clarke, Gaiman, Pratchett - nenhum destes autores são clássicos, mas se me derem a escolher entre livros a sério e os livros deles, eu sei o que escolhia. Li o "Wuthering Heights" uma vez e apanhei tudo, mas o meu "Good Omens" está literalmente a cair aos pedaços de ter sido lido tantas vezes.
Por isso, e já andava para fazer isso à algum tempo, vou iniciar este projecto, "O Meu Livro Dava Um RPG Indiano" -- para homenagear todos aqueles livros\comics\bds, ou seja, livros de "meninos" que são fixes porque dão vontade de, mais que ler, existir neles. Livros que deviam ser transformados em RPGs para que toda a gente pudesse brincar e sonhar lá dentro.
Porque afinal...
"Eles nem sabem, nem sonham
que o sonho comanda a vida
E que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."
Originalmente, isto ia ser umas quantas entradas de blog, mas achei por bem que toda a gente pudesse entrar e partilhar que livros leram que gostavam de ver como RPGs para repartir a diversão com os amigos qual merenda meia amassada, durante o intervalo grande.
Porque os adultos são chatos, e só se é verdadeiramente adulto quando se acha que tudo o que nos faz bem e felizes tem que ser aborrecido e enfadonho e cheio de palavras complicadas.
Fora o crescimento via livros a sério!
Fora os adultos!
Game on!