Orientações

[quote=dpontes]Podes não gerir as coisas directamente, podes ter um modelo para gerir automaticamente as coisas (o roll, por exemplo). Mas omitir esses detalhes por completo ou partir do principio que são irrelevantes em todas as situações é como dizer que não estás preocupado com o realismo e a imersão, estás sim preocupado em resolver problemas matemáticos em colaboração. Claro que é perfeitamente legítimo jogar desta forma mas não associo esse tipo de experiência a um RPG, associo a um jogo de tabuleiro.[/quote]

Mas aí é que estás muito enganado, é exactamente o oposto. Por razões que estão ligadas à resposta à tua pergunta:

[quote]É então a minha vez de fazer a pergunta directa: onde é que tu "localizas o real" num RPG, e já agora o que é que queres dizer com isso? :)[/quote]

Vontando atrás, por que raio de razão é que não perder tempo com detalhes funcionais nos remete para a matemática e para jogos abstractos? É um pressuposto teu, não o partilho.

Vejamos com um exemplo:

J é uma jovem consultora. Prepara-se para a sua primeira viagem de trabalho que a vai levar de avião à capital de outro país. J perde imenso tempo a pensar em cada detalhe da roupa, na logística do voo, se não se esquece de nada, etc. Todos os pequenos detalhes interessam, todos os pequenos detalhes são emocionantes. Um jogo sobre situações iguais à de J faz bem em atender aos detalhes.

Passaram 5 anos. J é uma consultora sénior. Viajar à volta do mundo é o seu dia-a-dia. Ela já nem pensa no que vai vestir - o seu guarda-roupa está todo programado -, não tem ansiedades com a logistica do voo que agora é quase inconsciente. Vale a pena perdermos tempo com aspectos que se tornaram rotina? Vale a pena continuarmos a fazer a gestão micro de toda e cada viagem de J? Claro que não!

Ora um sistema de jogo personagens típico cria regras muito detalhadas para a gestão das situações de vida do ponto de vista funcional. E depois não as adapta às circunstâncias.

Acresce que o que é que distingue a J novata da J veterana? A mentalidade, o que se passa na sua cabeça. Faz sentido o «micro-management» da primeira viagem porque é isso que ela tem na cabeça. Em termos de situação de jogo, em termos de personalidade e emoções da personagem, é isso que está em questão. Não faz sentido o «micro-management» da viagem da veterana porque é rotina, não é isso que preocupa J, não é isso que a emociona.

Como é evidente, o «micro-management» de uma viagem de J veterana faz sentido... se não for uma viagem rotineira. Se o imponderável, o inesperado, acontecerem. Um acidente de avião, um ataque terrorista, uma tempestade, etc.

O cinema, a literatura de acção, a ficção nas suas múltiplas formas operam precisamente com base neste princípio. O detalhe está lá por uma de duas razões: porque é dramático; porque dá espectáculo.

O mesmo sucede com a vida real. Lembras-te de algum carro com te tenhas cruzado durante do dia de hoje em particular? Provavelmente não. E se te lembras o provável é que seja por uma das seguintes razões: foi um carro fora de série, um Ferrari, por exemplo (espectacular); foram os carros envolvidos num acidente a que assististe (espectacular e dramático); porque quase que te atropelava (dramático). Ou estarei errado?

O que nos fica na memória, o que nos retêm, o que registamos subjectivamente é o que nos emociona, seja por ser dramático, seja por ser espectacular. Na vida e na ficção.

O mesmo deve suceder com um sistema de jogo de personagens. Estes jogos são sobre situações subjectivas, logo devem representar a mentalidade das personagens. Sendo assim, o seu sistema deve incidir sobre o que é dramático ou espectacular do ponto de vista destas, porque é isso que nos faz agir e é isso que nos fica na retina.

Ora fazer isto é que é ser realista em jogos de personagens!

Sérgio Mascarenhas

[quote=dpontes]Segundo o sistema, com 1 bp o teu personagem está prestes a perder o controlo e já só pensa na próxima dose -- é suposto modificares o teu comportamento. Caso chegues a zero o jogador perde mesmo o controlo do personagem e com alguma sorte dás por ti ao lado de um cadável exsangue na próxima cena. (existem outros efeitos mas acho que dá para entender)

Com 10 HPs no D&D tens 10 HPs. Não altera a personalidade, não diz que coxeias porque estás a 10% dos HPs, é um número que quanto muito te ajuda a gerir o que fazes com a miniatura e "jogar bem". Se tiveres 20 é mais fixe porque podes jogar melhor ainda, mas não és necessariamente maior ou mais fanfarrão. O sistema não serve para modelar a realidade, é só um jogo.[/quote]

Hmm, o que me dizes do V:tM lembra-me o bastante mais velhinho sistema RQ. Neste, o dano tem duas componentes, uma puramente quantitativa de gestão de HPs até chegarem a 0; e outra qualitativa. Se sofreres dano nas várias localizações do corpo, podes perder funcionalidade. Por exemplo, uma ferida importante num braço põe-te o braço fora de acção. No estômago deixa-te «paraplégico» (em termos funcionais e reversiveis com tratamento adequado). O sistema não incide sobre a componente psicológica, mas o jogador acaba por «viver» a agonia de decidir se continua em combate semi-inválido ou opta por uma solução mais expedita.

Por outro lado, o D&D não é assim tão irrealista como isso. Há numerosas situações reais de combatentes que continuaram a combater até cairem mortos de uma multiplicidade de feridas, mantendo a capacidade de combate do princípio ao fim.

Ora um rpg é um jogo e há que atender não apenas ao que se passa na cabeça da personagem mas também ao que se passa na cabeça do jogador. O que é melhor, um jogo hiper-realista mas onde as personagens acabam a passar a maior parte do tempo em situações desinteressantes para o jogador, ou sacrificar algum realismo mas conseguir um jogo mais interessante? Há um equilíbrio a atingir e não há receitas feitas para isso.

Sérgio Mascarenhas

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por que raio de razão é que não perder tempo com detalhes funcionais nos remete para a matemática e para jogos abstractos?

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Porque ao ter um sistema que perde menos tempo com detalhes funcionais normalmente crias uma camada de abstracção de uso rápido que apenas lida com números e probabilidades e não dá nenhuma imagem ao jogador do que se está a passar durante a acção. A questão da imagem pode não ser relevante a matar o goblin #312 mas pode ser fantástica quando estás no final da aventura a lutar contra o dragão azul no meio da neve...

Eu percebo que para ti isso é irrelevante e o mero desenrolar dos acontecimentos são suficientes para encarnares o personagem. O ataque acertou, o personagem está contente e esperançado; o personagem não viu a armadilha, ficou ferido e está cauteloso. Os pormenores são assim irrelevantes e nesta prespectiva o sistema quanto mais simples melhor, é um facto.

Mas como disse, pessoalmente gosto de imersão no ambiente (gosto de "ver o filme") portanto diria apenas que tiramos coisas diferentes do jogo. As bases dessa discussão já foram abordadas pelo Rick aqui. Vejo apenas uma divergência não de conhecimento dos factos mas de gostos pessoais que não me parece que seja possivel concordarmos, o que me parece legítimo.

Obrigado pelo texto, gostei da leitura :)

David Pontes

[quote=dpontes]Porque ao ter um sistema que perde menos tempo com detalhes funcionais normalmente crias uma camada de abstracção de uso rápido que apenas lida com números e probabilidades e não dá nenhuma imagem ao jogador do que se está a passar durante a acção.[/quote]

Mea culpa, não me expliquei bem. É certo que do meu ponto de vista é possível criar uma «camada de abstração de uso rápido» em domínios onde encontro imenso detalhe em vários sistemas de jogo. Mas, por outro lado, introduzo outros factores no jogo ausentes nesses sistemas, factores onde um sistema como, por exemplo, o D&D nem sequer chega a ter «uma camada de abstração de uso rápido»...

[quote]A questão da imagem pode não ser relevante a matar o goblin #312 mas pode ser fantástica quando estás no final da aventura a lutar contra o dragão azul no meio da neve...[/quote]

Certamente. Em universos onde o combate é um factor central - e como apreciador de fantasia estou francamente para aí virado - as regras de combate precisam de detalhe... resta saber qual detalhe! Para mim o detalhe ao estilo Rolemaster não me agrada. Há também muito detalhe ao estilo D&D de que não gosto (sem prejuízo de pensar que a 4ª edição está muito bem conseguida). A minha «zona de conforto» está algures num cruzamento de Pendragon com RuneQuest, mais alguma complexidade em alguns domínios (diferentes tipos qualitativos de dano e de protecção das armaduras, por exemplo; distâncias de ataque), menos detalhe noutros domínios (regras de iniciativa, entre outros) e, sobretudo, mais detalhe sobre a psicologia das personagens. (Quanto a este último, uma variante dos traços e paixões do Pendragon que os integre melhor com o resto do sistema.)

É que há detalhe que, não só é realista, como acelera a resolução dos combates. Um jogo que realmente leve em consideração a psicologia dos combatentes redunda em combates mais rápidos pois acabam muito antes de eles se abaterem mutuamente.

Sérgio Mascarenhas

My Life with Master é um bom exemplo do que descreves e o processo de criação de personagens/ambiente está definitivamente inserido no sistema, mas eu apenas lhe chamaria um processo do sistema e não o sistema do jogo em si.

O dpontes levantou um ponto que acho relevante para a questão que tinha colocado inicialmente:

[quote] Segundo o sistema, com 1 bp o teu personagem está prestes a perder o controlo e já só pensa na próxima dose -- é suposto modificares o teu comportamento. Caso chegues a zero o jogador perde mesmo o controlo do personagem e com alguma sorte dás por ti ao lado de um cadável exsangue na próxima cena. (existem outros efeitos mas acho que dá para entender)

Com 10 HPs no D&D tens 10 HPs. Não altera a personalidade, não diz que coxeias porque estás a 10% dos HPs, é um número que quanto muito te ajuda a gerir o que fazes com a miniatura e "jogar bem". Se tiveres 20 é mais fixe porque podes jogar melhor ainda, mas não és necessariamente maior ou mais fanfarrão. O sistema não serve para modelar a realidade, é só um jogo.

[/quote]

Olhando assim para as coisas, concordo que um RPG que tenha algum tipo de mecânica que determine se o personagem consegue ou não continuar a tomar acções, a falta ou "excesso" desta mecânica pode efectivamente influenciar as decisões do jogador sobre as atitudes/motivações do personagem, mas não posso deixar de ter em conta todas as outras situações onde esta mecânica não é relevante para o que se está a passar.

Imersão também é outra palavra que se aplica a muita coisa Ashamed pois tanto podemos falar de imersão num mundo de fantasia como de imersão nalgum tema dramático, para além da questão de estarmos mais ou menos imersos dentro da nossa personagem. Também é possível que mais ou menos imersão possa dizer respeito à quantidade de relações que é possível estabelecermos entre as regras e a ficção. Finalmente, a imersão também pode ter a ver com o ambiente à mesa de jogo, nomeadamente com o uso de adereços, música, sotaques apropriados, local em que está a decorrer a sessão, etc.

Assim sendo, a questão de nos sentirmos mais motivados pela vertente do jogo ou pela vertente da simulação pode não ter nada a ver com a imersão, pois há situações em que eu posso estar a maximizar a utilização dos meus recursos e a pensar tacticamente sempre dentro de personagem, ou seja, eu posso gostar de jogar o jogo pelo jogo e também desejar fazê-lo estando imerso na personagem o mais possível, sem isso querer dizer que estou preocupado com questões de suposto realismo.

Existem alguns componentes no D&D que reflectem alguma coisa do personagem e o ajudam a encarnar, tais como as stats, os skills (em menor grau), e dantes até havia o alinhamento. Mas tudo coisas perfeitamente facultativas, sinceramente não me recordo de haver menções nas regras de quando houvesse modificações nas stats (ray of enfeeblement etc.) o personagem devia ser interpretado de maneira diferente... E agora o alinhamento desapareceu :)

Se é relevante, depende do que achares relevante. Se tiveres a mesa cheia de powergamers de certeza que não vão achar piada quando te recusas a tomar iniciativa porque "um personagem com Carisma 6 é tímido". Por outro lado podem ser hardcore roleplayers e acham mal que uses da palavra quando o outro tem muito mais carisma que tu.

Continuo na minha, no D&D o roleplay é facultativo :)

Vendo as coisas por esse prisma:

a) Em qualquer RPG o roleplay é facultativo.

b) Qualquer sistema de jogo é facultativo para se fazer roleplay.

O que nos leva à questão; Para que usamos um sistema para se fazer roleplay?

Wink