Já dizia a minha avó que a teoria nos RPGs é como os pastéis: são só uma estrutura, não sabem a nada, mas pode se meter lá dentro o que se quiser :)
Queria falar de algumas ideias que me ajudaram a olhar o roleplay com uma perspectiva mais clara e abrangente. Não vejo razão para estas supostas teorias não poderem ser discutidas fora de uma pequena e obscura elite. Com isto, é minha humilde pretensão pô-las em português que se entenda, tentando explicá-las o melhor que souber.
Podemos começar por alguns elementos que ajudem a definir o que é jogar roleplay.
Temos um conjunto de jogadores que se reunem para criar uma história, para unidos construirem o que pode chamar de um Espaço Imaginário Partilhado (EIP.). Qualquer pessoa é capaz de imaginar alguma coisa. Se isso for comunicado entre nós, podemos imaginá-la em conjunto e partilharmos esse espaço. Para que isso seja possível, é necessário encontrar uma forma de os jogadores colaborarem, ou seja, um sistema que estabeleça dinamicamente a participação de cada um, de modo a que todos comuniquem e façam encaixar entre si os seus contributos.
Independentemente de regras, dados, setting, folhas de personagem e outros instrumentos, em cada sessão, o grupo encontra o seu sistema, a sua forma de funcionar. Cada jogador vai declarando aquilo que quer que aconteça e o sistema do grupo avalia qual a credibilidade que essa declaração tem para se reflectir sobre o EIP.
Num hipotético grupo, uma declaração pode precisar ou não de um lançamento de dados para ser credível, outra declaração só poderá ser credível se for introduzida por um determinado jogador, outra ainda poderá nunca ter credibilidade dentro do sistema, tudo de acordo com o que os jogadores, no momento, consideram válido.
A partir do momento em que um Espaço Imaginário é Partilhado, a forma como essa partilha é concretizada constitui um sistema.
Antes de continuar, deixem-me ver se percebi isto bem. Desta teoria toda, vem-me à ideia que, na essência, jogar roleplay baseia-se na convicção de que um grupo de pessoas se pode divertir criando uma história. Ninguém aqui fala de livros, regras, pontos de experiência, mestre-jogo, etc. De facto, acho interessante ver tudo isso como mera bagagem que o grupo escolhe trazer ou não para a sessão.
Penso que será sempre bom distinguir que as folhas de papel, os dados ou aquilo que um gajo qualquer escreveu não têm qualquer credibilidade em si mesmos, nós é que lhes reconhecemos ou não um determinado valor. Ás vezes, acontece-nos acreditarmos que só fazemos aquilo que vem escrito nos livros, mas é sempre bom lembrar-mo-nos que a escolha é nossa, que não tem sempre que ser assim.
Por outro lado, lembro-me agora que há sempre aquele pessoal que diz que não precisa de "sistema" para jogar, que jogam "freeform". Sim, de facto, nada na teoria diz que ter regras é obrigatório, mas algum tipo de sistema existe sempre, os jogadores é que até podem não ter consciência dele. É por isso que há aquela expressão "System does matter." De acordo com a definição apresentada, o modo como o grupo joga (os procedimentos usados para criar um EIP) importa significativamente. Assim sendo, um RPG não existe sem Sistema.
Neste primeiro artigo, queria ainda explicar a parte das posturas, os chamados "stances", que são um reflexo natural desta visão aberta do roleplay entregue aos seus participantes. As posturas são possíveis formas de classificar o alcance dentro do qual os jogadores intervêem no EIP do grupo. As diferentes posturas - todas elas ao dispõr do jogador ao longo da sessão - são: peão, actor, autor e director. A diferença entre elas reside no nível de credibilidade que é assumido em cada momento.
Na postura de peão, o jogador move a sua peça ao longo da história. O controlo que exerce está estabelecido sobre a personagem e é orientado segundo os seus desejos, ou seja, é uma projecção do jogador filtrada através do sistema para se reflectir sobre o EIP. Isto significa que a personagem não existe como uma entidade imaginária separada do jogador, não tem uma personalidade ou conjunto de expectativas que condicione as suas decisões - essas escolhas são assumidas pela vontade do próprio jogador.
Numa postura de actor, o controle também é mantido sobre a personagem, mas considera-se que o jogador assume credibilidade suficiente para construi-la com personalidade e convicções próprias, de forma a que se fale de uma pessoa imaginária separada do jogador, alguém que ele pode encarnar. Isto significa que a personagem pode vir a tomar decisões baseadas apenas no suposto conhecimento e percepções que dispõem.
A postura de autor é usada como se a personagem fosse um peão, mas o jogador exerce a sua credibilidade para justificar posteriormente as acções tomadas, invocando uma suposta motivação que a personagem teria.
Numa postura de director, a credibilidade do jogador para intervir no EIP só é limitada pela credibilidade do resto do grupo. Movendo-se para lá da esfera da personagem, é possível controlar tudo o que a rodeia, outras cenas, outras histórias, diferentes NPCs, vários acontecimentos, etc., permitindo definir qualquer dos traços da história.
Esta separação por posturas não pretende indicar que alguém jogue sempre da mesma maneira, pelo contrário. Todas as posturas são igualmente válidas. Teoricamente, um jogador pode, ao longo da mesma sessão, assumir cada uma destas atitudes nos momentos que achar apropriados, de forma a maximizar o seu divertimento e o do grupo. Esta possibilidade e o modo como as várias posturas podem ser assumidas por cada um fazem parte do sistema que é construído dinamicamente pelo grupo.
Para já, ficamos por aqui. Esta pequena apresentação do que é a essência de qualquer RPG é capaz de, na sua simplicidade complexa, chocar com as definições que muitos de nós temos construídas. Imagine-se que se comete a heresia de não falar em mestres-jogo ou em pontos de experiência! Sugiro que consultem o próximo artigo.
Bom apetite! ;)