Plus periculosa terra quam immanes bestiae

Folium XVII

Gelo Brilhante, Dia 22

À terceira hora, a chuva parou, e saímos de novo para a nossa viagem. Caminhámos mais duas horas até encontrarmos um novo sítio para descansar. E aí passámos o dia. A fome rói-me por dentro, mas vou aguentar. O Aldor diz que terá novos feitiços depois da meia-noite, são só mais algumas horas. Felizmente que ele foi criando água para todos nós, senão já tínhamos todos deixado os nossos corpos a alimentar os bichos do deserto.

Gelo Brilhante, Dia 24

Como de costume, no dia 22 saímos do abrigo assim que escureceu, mas ainda só devíamos ter andado uma hora quanto fomos surpreendidos por fissuras que se abriam no chão donde saía um vapor quentíssimo. Era óbvio que nos estávamos a aproximar do vulcão. Dessa vez o vapor apanhou-me em cheio, mas consegui aguentar o impacto sem me queixar. Esta viagem já me deixou bastante mais dura e resistente.
Mas isso foi só o início. No resto da noite tivemos que lidar com muito mais dessas torneiras de vapor inesperadas, e até de um jorro de lava que subitamente explodiu ao nosso lado. Felizmente que alguém conseguiu ouvir o barulho a tempo e dar o sinal de alarme. Não pude foi deixar de reparar que o Aldor mal se conseguia esquivar desses perigos. Ele já é tosco, mas com aquela armadura pesadíssima, ainda fica pior. No entanto, nunca o ouvi queixar-se: não sobra a mínima dúvida que ele é duro e resistente como o aço. Imagino é que deve estar cheio de queimaduras por baixo...
Hummm... é melhor não imaginar demais, não era bem nas queimaduras que eu me estava a concentrar...
Aguentámos sem parar até perto do amanhecer, quando finalmente alguém encontrou uma caverna onde nos abrigámos. Finalmente, o Aldor purificou a comida que eu ainda tinha e pude matar a minha fome. Até que enfim. Dei uma das minhas rações ao Google, porque, coitado, ele tinha desperdiçado todas as suas reservas ao tentar aproveitar alguma parte que a chuva não tivesse estragado.

Quando esse dia acabou, voltámos à marcha. As fissuras de vapor ainda nos acompanhavam, e umas horas depois de andarmos, eu e a Eruanne ouvimos um barulho novo. Mas não tivemos muitas dúvidas: parecia água a ferver e prestes a explodir. Fugimos a tempo de escapar a um Geiser que se abriu de repente... Não é nada de novo para mim, são muito vulgares na minha terra, mas são sempre perigosos. Continuámos a andar até que já perto da alvorada chegámos a uma zona de nevoeiro muito denso... Ou pelo menos assim parecia. Mas era fumo, vapor ou algo assim, que não só nos impedia de ver fosse o que fosse, até os outros perto de nós, como ainda nos dificultava a respiração. Tivemos de nos localizar pelos gritos, e depois confiar no meu sentido de orientação e do de Aldor. Começámos por andar com cautela, mas à medida que ficava mais difícil respirar, decidimos começar a correr ao mesmo tempo que sustínhamos a respiração. Não deve ter sido mais que meio minuto, mas pareceu uma eternidade até sairmos daquela infinidade branca e podermos finalmente tomar grandes fôlegos de ar, e voltar com a respiração ao normal.

Ainda andámos mais um bocado, até que já perto da alvorada, a Eruanne tornou a encontrar um sítio para ficarmos. E assim, passámos mais um dia. Perguntei ao Aldor se tinha algum feitiço que me ajudasse a remendar a saia, e ele acedeu delicadamente. Agradeci-lhe apenas por palavras e tornei a vestir a saia e a ficar uma moça decente... tanto quanto se pode neste calor, pelo menos. Mas ainda aproveitei para provocar um pouco o homem com a visão das minhas pernas enquanto imaginava o que faria com ele numa outra situação. Acho que não devia dizer estas certas coisas, mas enfim, um diário é um diário, e não tenho mesmo mais ninguém com quem desabafar, por isso cá fica.

Esqueci-me de dizer antes que num destes dias tentei perceber porque é que o Karol agora se afasta de nós enquanto avançámos. Não sei se tem que ver com a mania dele de que toda a gente detesta todos os Draconianos, ou se ele tem algum outro motivo, e ele também não ajudou nada... mesmo nada. Na verdade, por pouco não me bateu, e eu achei melhor deixá-lo em paz. É bastante irritável, e se calhar é mais sensato não o chatear mais. Mas enfim, gostava de o trazer para a luz. Este tipo de atitude só pode reforçar o sofrimento que ele sente de certeza, assim separado dos outros e sem verdadeiros amigos. Mas enfim, é uma luta que tem de ser desencadeada devagar...