Pugna et fuga in Porto Balifore

Folium XIV

Para lá do Mar

No dia seguinte, o 16º de Gelo Brilhante, fomos de manhã cedo para o cais. Estávamos tão excitados com a partida, e eu tão esquecida dos acontecimentos do dia da nossa chegada, que nem me lembrei de ir reclamar a minha lança junto dos Cavaleiros de Steel. Embarcámos, já sem os guias dos Mikku, deixando para trás o que tínhamos deixado na guarda, mas ainda assim levei comigo o meu cavalo. Só que realmente, nós os de Ice Reach nunca confiámos em barcos no alto mar, e eu depressa enjoei. Retirei-me para o meu beliche, debaixo do convés, e fiquei lá umas quatro horas, agonizando até que tive de vomitar e finalmente me comecei a sentir melhor. Quando regressei ao tombadilho, vi toda a gente com ar cansado e ferido, pois tinham estado a combater com Ghouls marinhos que tinham trepado a bordo. Tive uma espécie de riso amarelo quando mo contaram, triste por não ter participado na luta, mas dando graças a Habbakuk por me ter permitido acolher-me antes de os monstros aparecerem: na situação em que estava, dificilmente poderia ter dado algum contributo, e até poderia ter ficado em risco de vida. Se puder, nunca mais entrarei num barco de alto-mar.

A viagem demorou algumas horas e durante a tarde chegámos a Port Balifor, do outro lado da baía. Não vi muito da cidade, que me pareceu degradada e esquálida. Procurámos rapidamente uma estalagem onde ficar, e o único quarto que conseguimos arranjar era uma camarata no primeiro andar onde já mal se acomodavam mais quatro ou cinco criaturas, homens e anões, todos machos. Não era um local agradável, e não me sentia certamente à vontade a dormir ali com desconhecidos. Mas isso acabou por não ser um problema, já que outro bem maior se nos apresentou imediatamente. Quando ainda estávamos a perceber quem estava à nossa volta, uma patrulha de Cavaleiros Negros entrou pelo nosso quarto adentro e veio logo na minha direcção. Os meus companheiros tinham-me convencido, ainda no barco, a tentar disfarçar a minha fidelidade para com Solamnia, pois Port Balifor estava sob a pata de Neraka. No entanto, alguém lhes deve ter contado, certamente um passageiro do mesmo barco que nós, quem eu era, pois acusaram-me logo de ser uma espia e de que me iam levar presa. Neguei tudo, e seguindo uma ideia do Karol, disse-lhes que estava apenas de viagem com um grupo de companheiros até à Desolação em procura de ruínas e tesouros arqueológicos. Todos se riram, incluindo os outros residentes, e percebi logo que não tinha sido uma grande ideia. Mas mesmo assim, mantive a minha dignidade. Então, o capitão deles deu-me uma bofetada, e essa foi uma ofensa que não pude aceitar impunemente. Logo, logo levei a mão à espada para responder de forma severa, mas ela voou-me da mão. Imediatamente começou uma luta e felizmente os meus companheiros ajudaram-me sem hesitações. Consegui esgueirar-me aos ataques do capitão, apanhar a minha espada e ripostar, e acabei por matá-lo e a mais outro. Mas deixámos um fugir e ouvimo-lo a soar o alarme. Rapidamente, olhámos pela janela, e vimos uma outra patrulha a aproximar-se e entrar na estalagem. O meu cavalo ainda estava ali, parado à entrada, por isso esperei que toda a patrulha entrasse, e depois rapidamente abri a janela e saltei para o chão, montei e preparei-me para defender os meus camaradas enquanto fugiam pelo mesmo caminho. O Karol planou com o Google, um truque de que ele falava muitas vezes, e os outros saltaram como eu, com armadura e tudo, enquanto já ouvíamos os cavaleiros a subir as escadas a correr. Foi tudo uma questão de segundos, e em pouco tempo já fugíamos pelas ruelas negras e mal adormecidas de Port Balifor até que subitamente parámos, rodeados por pequenas figuras que saíam das sombras. Eram Kenders!, mas um tanto diferentes do Kender tradicional do resto de Krynn. Estes não estavam certamente para brincadeiras, e não perdiam tempo com perguntas inúteis e intermináveis. Disseram que nos podiam proteger dos Cavaleiros Negros e que os devíamos seguir.

Assim fizemos, em direcção ao sudoeste da cidade, e se o resto já era mau, isto ainda era pior, pois parecia um amontoado de cabanas mal montadas com chapas retorcidas e madeiras podres encavalitadas umas nas outras, formando uma espécie de plataforma contínua sobre frágeis estacas que tentavam ganhar espaço ao mar. Era como uma segunda cidade dentro da cidade, mas ainda mais pobre e desgraçada que a principal. Parece que aqui se acoitavam os Kender, numa espécie de resistência semi-organizada contra um inimigo abstracto. É possível que fossem os Cavaleiros de Neraka, mas pareceu-me que eles lutavam contra algo mais geral.... pelo que disse o seu líder, tentam restaurar a Desolação para o que ela já foi, mas não vejo como o possam conseguir.

O líder. Convém dizer como lá chegámos. Os Kender dirigiram-nos pelo labirinto que era a sua cidade, por cais estreitos e escorregadios onde o meu cavalo conseguiu manobrar de forma admirável, tendo-me seguido até à entrada de um navio aonde eles nos conduziram. Aí estava uma grande assembleia de Kenders, e um deles era notavelmente o seu chefe. Não percebi o nome dele, mas ele ficou radiante quando lhe dissemos que pretendíamos atravessar a Desolação para chegar a Kendermore. Pareceu assumir que íamos lutar pela sua causa, mesmo que não o tivéssemos afirmado. Aliás, nem sabemos bem qual ela é. Aí, a situação tornou-se bem menos tensa, e ele ofereceu-nos ajuda, a começar por um guia para a desolação, um humano de aspecto robusto e endurecido que supostamente conhece bem a região. Fiquei a admirá-lo durante algum tempo: era um excelente espécime físico, não há como negá-lo, e carregava um montante consigo que faz as feridas mais brutais que alguma vez vi uma arma fazer. O seu nome era Laundo.

Mas depressa passei para outras questões. Eu, pessoalmente, precisava de poções de cura, e tentei ainda comprar-lhes uma lança para substituir a que tinha deixado do outro lado do mar. Mas o recém-conhecido abriu a boca para me dar a pior notícia em muitos dias: os animais não sobrevivem à desolação, e o meu cavalo não me poderia acompanhar. Fiquei com muita pena, e precisei de alguns minutos para me recompor, enquanto os outros lidavam com as suas próprias necessidades. Por fim, lá me decidi a trocar o cavalo, a sela e todas as coisas que não poderiam levar comigo por alguma coisa de útil que os Kender me pudessem dar: arranjaram-me três poções de cura, e deram-me a escolher entre três pares de objectos: uma vela negra e uma poção; um cachecol e um pergaminho; uma pedra que dava luz e mais não sei o quê. Mas irritantemente, não me disseram o que cada um fazia. Acabei por escolher o pergaminho e o cachecol, certa de que a espada que tinha (e que o Aprendiz já tinha identificado) era melhor que a pedra para iluminar fosse o que fosse, e pensando que um pergaminho deve ser mais interessante que a poção. Nunca soube o que eram esses objectos, mas o pergaminho revelou-se inútil para mim, pois era um feitiço de mágico que nem ao Aprendiz interessava. Tentarei trocá-lo por algo mais útil na primeira oportunidade, mas para já fica comigo. Quanto ao cachecol, era perfeitamente vulgar.

Este relato começa com mais uma sessão em que eu não estive presente

(e se bem me lembro, abrange pelo menos 3 sessões diferentes),

mas felizmente a Karenya também estava de baixa, nauseada com enjoos.

Como este estado, em D&D3.5, é bastante debilitante para um combatente,

escolhi tirar a Karenya da acção e pô-la a descansar nos beliches em baixo, pelo

que tanto a personagem como o jogador 'faltaram'.

De nota, o hábito que se instalou mais tarde de eu me esquecer das coisas pelo

caminho e que o DM aproveita sempre ao máximo: a minha lança ficou em

Ak-Khurman, e o meu cavalo em Port Balifor. Nesta sessão, eu já tinha voltado

ao jogo e fiquei realmente muito triste por não poder levar o cavalo. O conceito

fundamental da personagem é desenvolver uma cavaleira, e sem lança e sem cavalo

ela fica um pouco aquém desse ideal.

Ainda assim, gostei da fuga precipitada dos Cavaleiros Negros, gostei do combate

com a primeira patrulha e detestei o comportamento dos Kender. Se bem que tenha

sido bom ao menos trazer umas poções de cura. Mas em geral, acho que dei mais

do que o que trouxe, já que perdi o cavalo, a sela, e toda a carga que não pude

levar comigo.