Esta é uma daquelas questões perenes relativas a jogos baseados no BRP da Chaosium. Devo dizer que embora a resposta seja simples não encontro nenhuma formulação que corresponda exactamente à minha própria expressão da mesma, por isso aqui vai:
Primeiro tens de considerar que as competências podem ser utilizadas em muitos contextos diferentes. Estes podem ser definidos à luz de cinco ângulos: a vertente rotina; a vertente consequências; a vertente complexidade; a vertente de correcção de erros; e a vertente dramática.
A vertente rotina respeita ao facto de a situação corresponder ou não ao que é rotineiro, comum, para a utilização da competência àquele nível. Exemplo tomando como referência uma competência de comunicação ou de cultura:
Pedir um café e um bolo numa pastelaria é rotineiro para um utilizador básico da competência. Mas não o é para quem não conheça a lingua (e não possa utilizar linguagem gestual) ou para quem venha de uma cultura onde não se toma café nem se comem bolos.
Pedir uma refeição corrente a partir de um menu é rotineiro para quem domine a competência ao nível médio da população. Mas não o é para quem vem de uma cultrua com hábitos alimentares diferentes.
Escolher um vinho num restaurante de luxo é rotineiro para quem pertença à sociedade alta. Mas não o é para o cidadão comum.
A vertente consequências respeita ao que sucede em caso de falhanço. As consequências são graves ou incosequentes?
Uma operação para extrair um tumor em torno do fígado é completamente diferente de uma operação para extrair um sinal na face por motivos de cosmética.
No entanto, uma operação para extrair um sinal na face da cabeleireira do bairro é completamente diferente em termos de consequências de operação idêntica para extrair um sinal na face de uma estrela de cinema.
A vertente complexidade define se a situação é simples ou complexa. A especialização e a evolução dos sistemas de produção evoluiram precisamente no sentido de decomporem as actividades em tarefas simples e fáceis de realizar com graus de competência baixos; o que permitiu aumentar a complexidade total do sistema produtivo.
A vertente de correcção de erros. O que sucede se a tentativa falhar? É possível corrigir o erro com um custo mínimo? Ou não há volta a dar-lhe?
Um carpinteiro falha a martelada e parte a peça de madeira em que está a trabalhar para fabricar uma cadeira. Deita os bocados para o lado, pega outra peça de madeira e repete a operação.
Um naufrago tenta nadar para atingir um pedaço de madeira salvador. Falha, não há outro arrimo por perto, está entregue a si mesmo, não há segunda tentativa.
A vertente dramática. Como se liga a cena em curso ao conjunto do cenário? É uma cena importante ou secundária? É um «turning point»? É possível contornar o que dela resulte? Chega num momento de tensão no jogo? O foco da cena está na cena em si ou na sua ligação a cenas futuras?
O confronto directo com o NPC inimigo constitui uma cena que vale por si.
Interrogar uma NPC para extrair uma informação determinante para os PCs decidirem o que fazem de seguida é uma acção que vale pela sua ligação ao todo do enredo.
Vistas estas quatro vertentes organizo-as da seguinte maneira em termos da definição do resultado da acção:
Automático vs. aleatório
Rotineiro vs. extraordinário
inconsequente vs. terminal
Simples vs. complexo
Corrigivel vs. incorrigivel
Cena de passagem vs. cena decisiva
Em princípio basta que a cena tenha um dos valores à esquerda para ser de resolução automática. Alternativamente cada valor à esquerda confere uma bonificação ou penalização à competência. Isto porque as cinco dimensões não são binárias, logo é possível introduzir gradações a que correspondem diferentes modificadores.
Nota também que dizer que a situação é rotineira, simples, etc. não significa necessariamente que ela seja fácil para os PCs. Ela pode ser rotineiramente difícil, por exemplo (pensa no Charlie Brown e nas suas desventuras). Um hobbit tentar atacar de frente um dragão com uma daga para o matar é inconsequente, por exemplo.
Um operário numa linha de produção realiza uma tarefa simples, rotineira, corrigível, inconsequente e de passagem. Ele até pode ter uma percentagem básica mas essa percentagem é suficiente para manter a máquina a funcionar. A resolução é automática.
O técnico numa central nuclear com problemas de manutenção realiza aquilo que pensa ser uma tarefa simples, rotineira, corrigível, inconsequente e de passagem. Mas há um problema que ele não conhece que torna a acção consequente; se ele falha a central entra num processo sem retorno; a repetição da mesma acção é inútil, pois a situação entretanto muda, logo o falhanço não é corrígivel; o que é necessário é sair da rotina e aplicar uma linha de acção extraordinária; mas a cena é de passagem, pois o que está dramaticamente em causa é mesmo lançar a central nuclear numa situação emergência. A resolução é automática.
O comboio foi sabotado, está a ganhar velocidade e os sistemas de controlo não funcionam, o maquinista tem de encontrar maneira de o travar. A situação não é rotineira, não é simples, não é corrigível, as consequências são gravíssimas, a cena vale por si. É tempo de pôr os dados a rolar.
O hobit está defronte do dragão na sua caverna. A situação é dramática, extraordinária, complexa (é preciso saber falar a um dragão), não há possibilidade de repetição. Automática ou variável?
Automática pois há mais uma dimensão a ter em conta: é uma cena de passagem. Ela ocorre para o hobbit obter uma informação vital, saber qual o ponto fraco do dragão. As dificuldades ocorreram antes, na preparação da cena. Foi aí que os jogadores foram confrontados com as dificuldades, não é agora, nesta cena que elas se vão colocar.
Um dragão destrói uma cidade. Toda a gente foge em pânico. Toda menos um arqueiro. Ele pode usar a sua competência de arco para atacar o dragão. Se falhar, é pouco provável que possa repetir pois o dragão vai atacá-lo imediatamente. Se falhar ou se suceder, as consequências são terminais. A cena é decisiva.
O arqueiro pode alvejar de forma rotineira, ou seja, alvejar o dragão. Isso será uma acção simples para ele. Mas neste caso o resultado pode ser decidido de forma automática ou pode ser aplicada uma alta penalização que torna o sucesso quase impossível.
A situação requer uma abordagem extraordinária e complexa. Felizmente o arqueiro está preparado para isso. Ele sabe que tem de alvejar um ponto preciso, o ponto em que o dragão não tem uma escama a proteger o coração, o que torna a situação extraordinária; e ele tem de manter a calma, visar o dragão, não se deixar importunar pelas pessoas que fogem, gritam, morrem, o que torna a situação complexa.
Numa situação destas como deve agir o MJ? Bem, parte do trabalho foi feito antes, quando o grupo de PCs visitou o monte onde vivia o dragão; o PC hobbit foi falar com o dragão e obteve a informação sobre o seu ponto fraco; deu-a ap arqueiro; o arqueiro prepara-se para atacar o dragão e nessa preparação enfrenta as dificuldades. Quanto mais tempo levar a preparar-se mais destruição ocorre.
Matar o dragão é difícil mas exequível. Cabe dentro da competência do arqueiro, não exige penalizações adicionais. Pelo contrário, a serem aplicados modificadores eles serão bonificações acumuladas na preparação do tiro de arco.
Do meu ponto de vista é assim que se deve abordar o sistema de BRP. E muitos outros, aliás, basta adaptar as ideias aos seus mecanismos de resolução de acções.
Sérgio Mascarenhas