Questão sobre Call of Cthulhu (6ª Ed)

Após ter iniciado a aventura do starter kit fiquei com a impressão (e depois vi que não era o único) de que o sistema de skill checks utilizado é um bocado "difícil". Isto é, na realidade se uma personagem não tem skills a pelo menos 50% torna-se muito difícil fazer seja o que for.

Estou errado ou há mais jogadores que pensam assim? Há forma de contornar este senão? Com um RPG tão antigo e quase inalterado ao longo das edições, pergunto-me se é impressão minha ou se tal foi ignorado ao longo dos tempos.

Para já o que me ocorre é quem cria a personagem ser o mais especializado/limitado possível ou então subir um pouco a percentagem base das skills.

Gostava de saber o que pensam sobre o assunto!:)

Curiosamente, este é um assunto sobre o qual eu já falei com o neonaeon numa entrevista que vai sair no episódio 10 do Jogador-Sonhador.

É habitual dizer-se que as skills percentuais são intuitivas pois a probabilidade básica de sucesso é evidente. Se tens 30% na skill, tens 30% de hipótese de passar num teste simples a essa skill. Acontece que uma coisa é saber desde logo qual é a probabilidade matemática e outra bem diferente é perceber que, para se ser competente em alguma skill de Call of Cthulhu, 50% é de facto o mínimo para nos sentirmos seguros a testar essa skill.

Sim, é costume as várias personagens do grupo que está a jogar ficarem especializadas cada uma em determinadas skills de forma a que se complementem mutuamente. Sim, isso significa que uma personagem que esteja sempre sozinha (por só haver um jogador e um mestre-jogo) tem maiores dificuldades em avançar num cenário tradicional de CoC.

Cabe ao mestre-jogo tentar compensar estas eventuais dificuldades com lançamentos suplementares, testes aos atributos x5 ou com a ajuda de NPCs - não deixando de ter em conta que, em CoC, é suposto as personagens terem uma provável margem de sucesso inferior ao que acontece em outros RPGs, desde que a tensão de falhar contribua para o ambiente de terror do jogo.

Em resposta as tuas perguntas posso dizer que:

Estas errado, mas decerto existem mais jogadores a pensar assim.

E...

Existe de facto um modo de contornar esse senao, e esta presente nas regras.

Segundo as regras da quinta edicao, uma skill a 25% representa familiaridade suficiente para que o PC nao a necessite de rolar, a nao ser num caso extremo ou se o resultado de um failure tiver consequencias horrendas.

por exemplo, alguem com Espanhol 25% ou mais nao necessita de rolar a skill para falar com alguem ou ler um jornal nessa lingua.

Ja 50% representa o suficiente para se viver da skill, se tal for possivel.

O que as pessoas se costumam esquecer e que a maior parte do tempo nao e necessario, nem desejavel, rolar os dados em CoC. Ninguem precisa de rolar Spot Hidden se tiver um par de horas para vasculhar um quarto; agora, se so tiver 5 minutos para uma vistoria cursoria, entao o Spot Hidden representa a probabilidade de no pouco tempo disponivel encontrar o que procura.

Mesma coisa para Fast Talk, por exemplo. Obrigar o coitado com Fast Talk 15% a rolar para perguntar com sucesso a senhora da esquina se viu um tipo suspeito a rondar a zona nos ultimos dias e assinino por parte do GM. Agora, convencer um policia que acudiu ao som de tiros e se deparou com um PC, de que as manchas vermelhas nas suas maos sao ketchup...ai sim, rola meu filho.

Por ultimo, nao esquecer que as skills podem sofrer modificadores, ja vi +/-20% a testes em aventuras publicadas pela Chaosium.

Subir as bases das skills e o caminho para a desgraca. Se o jogo existe tao inalterado e popular desde a tanto tempo...bem, alguma razao ha-de haver.

Quanto a "especializacao", representa apenas o mundo real e os PCs de CoC sao pessoas normais. Se achares que parece muito limitante para e pensa um minuto: quantas coisas sabes tu fazer suficientemente bem que justificariam uma skill de 50%, ou mesmo 25% em Call of Cthulhu?

Sabes guiar um carro? Consegues guia-lo todo o dia e saber onde ficam as ruas todas da cidade? Programar Linux? Esquartejar um porco? Falar fluentemente varias linguas? Usar e cuidar de pistolas? Revolveres? Rifles? Sabes lutar corpo-a-corpo? Manejar um machado? Percebes de Astrofisica? De Historia? De Mecanica Quantica? Genetica? Sabes pilotar um aviao? Fazer skydiving sem te matares? Es um sedutor de mulheres bestial? Um mentiroso nato quase infalivel? Consegues detectar em menos de um minuto se algo foi mudado numa sala desde o dia anterior? Consegues investir na bolsa e nao perder o teu dinheiro? Sabes preencher uma declaracao de IRS sem ajuda absolutamente nenhuma? Conseguirias substituir o sistema electrico da tua casa? A canalizacao? Sabes apagar um incendio? Serias capaz de acampar sozinho na selva e viver do que apanhavas ou cacavas? Conseguias encontrar o teu caminho de volta se so tivesses as estrelas e o sol para te guiarem? Ja agora, sabes manejar um barco a vela? Orientares-te no meio do oceano sem terra a vista? Sabes como preparar um cadaver humano para um enterro? Percebes de cirurgia? Sabes como tratar uma fractura exposta? Sabes como verificar alem de margem para duvidas se alguem esta morto ou vivo? Es qualificado para passar receitas de antibioticos? Consegues acalmar alguem que tenha sofrido um ataque de histeria falando com a pessoa? Consegues negociar com criminosos numa situacao de refens? Sabes consertar um tractor pifado? Operar uma escavadeira?

Deixa-me por a questao de outro modo: de todas as skills acima, dominas nem uma que seja para justificar te-la a 50%? Conseguias fazer uma carreira a partir dela?

Bem vindo a Call of Cthulhu. Onde os PCs sao pessoas muito normais num mundo totalmente anormal. Happy

[quote=Rick Danger]

É habitual dizer-se que as skills percentuais são intuitivas pois a probabilidade básica de sucesso é evidente. Se tens 30% na skill, tens 30% de hipótese de passar num teste simples a essa skill. Acontece que uma coisa é saber desde logo qual é a probabilidade matemática e outra bem diferente é perceber que, para se ser competente em alguma skill de Call of Cthulhu, 50% é de facto o mínimo para nos sentirmos seguros a testar essa skill.

[/quote]

As skills intituivas sao uma das mehores facetas de call of Cthulhu, se um jogador quiser criar um especialista numa area sabe logo como o fazer. Melhor ainda, nao e como aqueles jogos em que o pobre jogador enterra pontos numa habilidade ate a ter a nivel Olimpico; e depois o GM chula o nivel de dificuldade do teste ao ponto de o tornar matematicamente impossivel so porque lhe da jeito que o pesonagem falhe.

[quote=Rick Danger]

Sim, é costume as várias personagens do grupo que está a jogar ficarem especializadas cada uma em determinadas skills de forma a que se complementem mutuamente.

[/quote]

Claro, tal como em 99% dos RPGs. Em D&D ninguem vai jogar uma party composta so de uma classe. Ate os jogos de super herois obedecem a esta tendencia.

[quote=Rick Danger]

Sim, isso significa que uma personagem que esteja sempre sozinha (por só haver um jogador e um mestre-jogo) tem maiores dificuldades em avançar num cenário tradicional de CoC.

[/quote]

Como em 99% dos RPGs, que sao concebidos como jogos de grupo e nao uma actividade a dois. Tambem, nada proibe o jogador numa situacao dessas de jogar uma party de varios investigadores.

[quote=Rick Danger]

Cabe ao mestre-jogo tentar compensar estas eventuais dificuldades com lançamentos suplementares, testes aos atributos x5 ou com a ajuda de NPCs [/quote]

Discordo. Cabe aos jogadores puxarem pela cabeca e ao GM nao exigir testes tolos, excessivos ou desnecessarios.

[quote=Rick Danger]

- não deixando de ter em conta que, em CoC, é suposto as personagens terem uma provável margem de sucesso inferior ao que acontece em outros RPGs, desde que a tensão de falhar contribua para o ambiente de terror do jogo.

[/quote]

Discordo de novo (sorry Rick Smile) isso e apenas uma das inumeras maneiras de jogar Call of Cthulhu; nao e "suposto" ser assim. Assim sera se o grupo assim o desejar.

Eu mestrei uma campanha de varios meses em que os investigadores sairam sempre vitoriosos. A unica baixa resultou de um suicidio porque um jogador teve de deixar o jogo por falta de tempo e insistiu em matar o seu PC. Garanto-te que ninguem se sentiu assustado durante aqueles jogos; agora risos ao ponto de termos de parar para respirar...varias vezes.

[quote=Vargr]Cabe aos jogadores puxarem pela cabeca e ao GM nao exigir testes tolos, excessivos ou desnecessarios.[/quote]A minha resposta a esta questão parte do princípio que isso já acontece e que haverá então uma altura em que é mesmo preciso lançar os dados.

[quote=Vargr]Eu mestrei uma campanha de varios meses em que os investigadores sairam sempre vitoriosos.(...) Garanto-te que ninguem se sentiu assustado durante aqueles jogos;[/quote]Já agora então, na tua opinião, o que é que distingue Call of Cthulhu de outros RPGs e quão consideras importante recriar no jogo o ambiente das histórias de Lovecraft?

[quote=Rick Danger]

[quote=Vargr]Cabe aos jogadores puxarem pela cabeca e ao GM nao exigir testes tolos, excessivos ou desnecessarios.[/quote]A minha resposta a esta questão parte do princípio que isso já acontece e que haverá então uma altura em que é mesmo preciso lançar os dados.[/quote]

Entao nesse caso, lancam-se. Qual e o problema?

Agora, sacar testes [stat]x5 ou fazer 30 por uma linha para assegurar que os PCs se falham o primeiro roll, passam o segundo, ou o terceiro...ou o quarto e absurdo. Nesse caso o GM faria melhor em nao exigir o teste em primeiro lugar.

Mas eu sei do que falas, so que nao tem a ver com o jogo ou as suas regras. Tem a vir sim com os cenarios.

Um cenario de CoC que depende absolutamente do sucesso de um roll ou dois para a progressao da investigacao (e Cthulhu-todo-poderoso sabe que existem muitos desses, mesmo entre os publicados pela Chaosium Fighting) e belo exemplo de um cenario que...perdoem a linguagem, e uma bela bosta.

Quando estava a preparar a minha campanha nao escrevi uma unica aventura, limitei-me a usar os livros da Chaosium. Mas antes de aprovar alguma passava-a a pente fino para assegurar que A PISTA ABSOLUTAMENTE ESSENCIAL (TM) nao dependia apenas de um teste de Spot Hidden, Read Latin, ou algo assim. E esse fosse o caso alterava logo a coisa.

As skills de Call of Cthulhu, tal como os seus equivalentes noutros jogos, nao representam a probabilidade absoluta, final e inalteravel de eles realizarem uma tarefa. representam a chance media de sucesso quando o resultado final nao pode ser pre-determinado com o simples uso de massa cinzenta do GM sobre o que ele conhece da situacao e do cenario.

Se um investigador tenta abrir um cofre de banco a cabecada, tou-me nas tintas de rolou 01 num teste de STRx1. Na minha mesa ele nem rola, a nao ser para determinar quantos pontos de vida perde num traumatismo craniano.

Por outro lado, dar um tiro na cabeca a um gajo a dormir a queima-roupa nao requer teste nenhum, e um sucesso automatico.

Agora, qualquer GM que nao tenha, e desculpem o Portugues outra vez, a cabeca enfiada no rabo, consegue determinar se algo e bem sucedido ou nao para a maior parte das accoes entre estes dois extremos sem necessitar de dados. E so naqueles casos com demasiadas variaveis, como tiroteios, ou quando os PCs tem falta de tempo, equipamento ou estao sob grande pressao que o GM se ve forcado a abandonar o fiat-logica e dar aos dados o controlo sobre os eventos.

Quem sabe ler Latim eventualmente vai decifrar o manuscrito, nem que tenha de ir a biblioteca arranjar um lexico, uma gramatica e um dicionario. Quem souber reparar um carro, acaba eventualmente por consertar o motor do calhambeque dos PCs (se este tiver arranjo, claro). O teste de Repair so faz sentido se, por exemplo, o carro necessitar de ser arranjado rapidamente ou ferramentas necessarias estiverem em falta. Neste ultimo caso pode ate ser que o motor nao tenha arranjo ate a chave de X polegadas ser obtida, o que automaticamente invalida a necessidade de um teste. Quando a chave for obtida, se derem tempo ao PC o carrinho volta a andar sem qualquer role.

[quote=Rick Danger]

[quote=Vargr]Eu mestrei uma campanha de varios meses em que os investigadores sairam sempre vitoriosos.(...) Garanto-te que ninguem se sentiu assustado durante aqueles jogos;[/quote]

Já agora então, na tua opinião, o que é que distingue Call of Cthulhu de outros RPGs[/quote]

Simples. O mesmo que destingue os outros RPGs de Call of Cthulhu.

Se nao percebeste a minha resposta, e porque nao perbeste a tua pergunta. Smile

[quote=Rick Danger]e quão consideras importante recriar no jogo o ambiente das histórias de Lovecraft?[/quote]

Tao importante quanto considero essencial jogar D&D exclusivamente nas settings officiais de Greyhawk e Forgotten Realms ou Traveller somente na setting do Third Imperium.

Ou seja...totalmente irrelevante e nao importante de todo. Isto para nao dizer, tristemente limitativo as potencialidades do (IMHO) melhor RPG de horror/investigacao de sempre.

Mas as regras já dizem isso. Os lançamentos não são feitos para actividades rotineiras, mas para situações excepcionais; uma pessoa mesmo com 25% pode conduzir o carro normalmente, não precisa de roll, agora se houver uma perseguição, aí sim preciusa do roll (tendo provavelmente um acidente como sucederia na realidade).

E essa de que sabendo latim, com um dicionário e lexico chega-se lá não é bem assim. Toda a gente já viu as "fantásticas "traduções que são feitas por vezes nas legendagens de filmes ou traduções de livros feitas por gente profissional que percebemos logo que o tradutor não percebeu o significado da frase (o equivalente a falhar um roll).

" Robot durante o dia, vegetal durante a noite"

Esta é uma daquelas questões perenes relativas a jogos baseados no BRP da Chaosium. Devo dizer que embora a resposta seja simples não encontro nenhuma formulação que corresponda exactamente à minha própria expressão da mesma, por isso aqui vai:

Primeiro tens de considerar que as competências podem ser utilizadas em muitos contextos diferentes. Estes podem ser definidos à luz de cinco ângulos: a vertente rotina; a vertente consequências; a vertente complexidade; a vertente de correcção de erros; e a vertente dramática.

A vertente rotina respeita ao facto de a situação corresponder ou não ao que é rotineiro, comum, para a utilização da competência àquele nível. Exemplo tomando como referência uma competência de comunicação ou de cultura:

Pedir um café e um bolo numa pastelaria é rotineiro para um utilizador básico da competência. Mas não o é para quem não conheça a lingua (e não possa utilizar linguagem gestual) ou para quem venha de uma cultura onde não se toma café nem se comem bolos.

Pedir uma refeição corrente a partir de um menu é rotineiro para quem domine a competência ao nível médio da população. Mas não o é para quem vem de uma cultrua com hábitos alimentares diferentes.

Escolher um vinho num restaurante de luxo é rotineiro para quem pertença à sociedade alta. Mas não o é para o cidadão comum.

A vertente consequências respeita ao que sucede em caso de falhanço. As consequências são graves ou incosequentes?

Uma operação para extrair um tumor em torno do fígado é completamente diferente de uma operação para extrair um sinal na face por motivos de cosmética.

No entanto, uma operação para extrair um sinal na face da cabeleireira do bairro é completamente diferente em termos de consequências de operação idêntica para extrair um sinal na face de uma estrela de cinema.

A vertente complexidade define se a situação é simples ou complexa. A especialização e a evolução dos sistemas de produção evoluiram precisamente no sentido de decomporem as actividades em tarefas simples e fáceis de realizar com graus de competência baixos; o que permitiu aumentar a complexidade total do sistema produtivo.

A vertente de correcção de erros. O que sucede se a tentativa falhar? É possível corrigir o erro com um custo mínimo? Ou não há volta a dar-lhe?

Um carpinteiro falha a martelada e parte a peça de madeira em que está a trabalhar para fabricar uma cadeira. Deita os bocados para o lado, pega outra peça de madeira e repete a operação.

Um naufrago tenta nadar para atingir um pedaço de madeira salvador. Falha, não há outro arrimo por perto, está entregue a si mesmo, não há segunda tentativa.

A vertente dramática. Como se liga a cena em curso ao conjunto do cenário? É uma cena importante ou secundária? É um «turning point»? É possível contornar o que dela resulte? Chega num momento de tensão no jogo? O foco da cena está na cena em si ou na sua ligação a cenas futuras?

O confronto directo com o NPC inimigo constitui uma cena que vale por si.

Interrogar uma NPC para extrair uma informação determinante para os PCs decidirem o que fazem de seguida é uma acção que vale pela sua ligação ao todo do enredo.

Vistas estas quatro vertentes organizo-as da seguinte maneira em termos da definição do resultado da acção:

Automático vs. aleatório

Rotineiro vs. extraordinário

inconsequente vs. terminal

Simples vs. complexo

Corrigivel vs. incorrigivel

Cena de passagem vs. cena decisiva

Em princípio basta que a cena tenha um dos valores à esquerda para ser de resolução automática. Alternativamente cada valor à esquerda confere uma bonificação ou penalização à competência. Isto porque as cinco dimensões não são binárias, logo é possível introduzir gradações a que correspondem diferentes modificadores.

Nota também que dizer que a situação é rotineira, simples, etc. não significa necessariamente que ela seja fácil para os PCs. Ela pode ser rotineiramente difícil, por exemplo (pensa no Charlie Brown e nas suas desventuras). Um hobbit tentar atacar de frente um dragão com uma daga para o matar é inconsequente, por exemplo.

Um operário numa linha de produção realiza uma tarefa simples, rotineira, corrigível, inconsequente e de passagem. Ele até pode ter uma percentagem básica mas essa percentagem é suficiente para manter a máquina a funcionar. A resolução é automática.

O técnico numa central nuclear com problemas de manutenção realiza aquilo que pensa ser uma tarefa simples, rotineira, corrigível, inconsequente e de passagem. Mas há um problema que ele não conhece que torna a acção consequente; se ele falha a central entra num processo sem retorno; a repetição da mesma acção é inútil, pois a situação entretanto muda, logo o falhanço não é corrígivel; o que é necessário é sair da rotina e aplicar uma linha de acção extraordinária; mas a cena é de passagem, pois o que está dramaticamente em causa é mesmo lançar a central nuclear numa situação emergência. A resolução é automática.

O comboio foi sabotado, está a ganhar velocidade e os sistemas de controlo não funcionam, o maquinista tem de encontrar maneira de o travar. A situação não é rotineira, não é simples, não é corrigível, as consequências são gravíssimas, a cena vale por si. É tempo de pôr os dados a rolar.

O hobit está defronte do dragão na sua caverna. A situação é dramática, extraordinária, complexa (é preciso saber falar a um dragão), não há possibilidade de repetição. Automática ou variável?

Automática pois há mais uma dimensão a ter em conta: é uma cena de passagem. Ela ocorre para o hobbit obter uma informação vital, saber qual o ponto fraco do dragão. As dificuldades ocorreram antes, na preparação da cena. Foi aí que os jogadores foram confrontados com as dificuldades, não é agora, nesta cena que elas se vão colocar.

Um dragão destrói uma cidade. Toda a gente foge em pânico. Toda menos um arqueiro. Ele pode usar a sua competência de arco para atacar o dragão. Se falhar, é pouco provável que possa repetir pois o dragão vai atacá-lo imediatamente. Se falhar ou se suceder, as consequências são terminais. A cena é decisiva.

O arqueiro pode alvejar de forma rotineira, ou seja, alvejar o dragão. Isso será uma acção simples para ele. Mas neste caso o resultado pode ser decidido de forma automática ou pode ser aplicada uma alta penalização que torna o sucesso quase impossível.

A situação requer uma abordagem extraordinária e complexa. Felizmente o arqueiro está preparado para isso. Ele sabe que tem de alvejar um ponto preciso, o ponto em que o dragão não tem uma escama a proteger o coração, o que torna a situação extraordinária; e ele tem de manter a calma, visar o dragão, não se deixar importunar pelas pessoas que fogem, gritam, morrem, o que torna a situação complexa.

Numa situação destas como deve agir o MJ? Bem, parte do trabalho foi feito antes, quando o grupo de PCs visitou o monte onde vivia o dragão; o PC hobbit foi falar com o dragão e obteve a informação sobre o seu ponto fraco; deu-a ap arqueiro; o arqueiro prepara-se para atacar o dragão e nessa preparação enfrenta as dificuldades. Quanto mais tempo levar a preparar-se mais destruição ocorre.

Matar o dragão é difícil mas exequível. Cabe dentro da competência do arqueiro, não exige penalizações adicionais. Pelo contrário, a serem aplicados modificadores eles serão bonificações acumuladas na preparação do tiro de arco.

Do meu ponto de vista é assim que se deve abordar o sistema de BRP. E muitos outros, aliás, basta adaptar as ideias aos seus mecanismos de resolução de acções.

Sérgio Mascarenhas

Uma coisa que eu não cheguei a dizer é que, por outro lado, um falhanço num lançamento não deve paralisar o jogo, ou seja

"falhei o teste" não deverá querer dizer "não se passa nada".

Alguns RPGs como Burning Wheel ou Primetime Adventures têem sempre esta questão em consideração de forma a que um lançamento dos dados faça sempre avançar a historia independentemente de ser um sucesso ou um falhanço. Outros RPGs (como BRP) não dão tanta importância a isto deixando mais na mão dos seus leitores o que fazer quando tudo falha e se esse teste deveria até ser feito ou não.

Falhar em Call of Cthulhu é bom. Faz parte do tema a personagem sentir-se desconstruída e posta em causa em tudo o que pensava estar sobre controlo. É bom haver essa tensão, esse risco de as nossas melhores competências nos falharem no momento dramático em que mais precisamos delas. Os bons falhanços mudam a história e levam-nos até sítios que nunca julgávamos serem possíveis. Deve-se é evitar os maus falhanços, aqueles a seguir aos quais a sessão se afunda num longo momento de silêncio em que nada acontece.

O problema é que há maneiras e maneiras de lidar com essa questão que, aliás, nem é uma questão de mecânicas de jogo no sentido tradicional do termo. São raríssimos os jogos que, do meu ponto de vista, lidam com o tópico com base numa abordagem adequada (o BW não o faz de todo, qt ao PTA igoro porque não o conheço).

A razão é simples, para se lidar com essa questão é preciso ter-se uma ideia bem estruturada e bem desenvolvida do que é a estrutura dramática de um rpg. Não há praticamente ninguém que tenha trabalhado este tema a sério, com algumas excepções.

A primeira foram o Gigax e o Arneson. A estrutura do dungeon clássico é uma estrutura de drama de jogo bem concebida e bem realizada, daí a sua persistência. Não sendo o único modelo possível e desejável é o mais conseguido. É pena pois isso significa que há todo um universo de alternativas ainda por explorar de forma sistemática.

Outro designer que tem trabalhado este tema é o Robin D. Laws. Ém um trabalho em progresso. Do pouco que procura explorar a fundo conceitos e modelos testados noutros domínios (teatro, cinema, etc.). Eu tenho muitas dúvidas quanto ao seu sucesso mas pelo menos faz sentido e aponta pistas para o futuro.

Depois há os palavrosos preguiçosos e inchados como o Ron Edwards... mas não vale a pena perder tempo com ideias tontas.

E a escola dos países nórdicos que também tem ideias interessantes.

Mas tudo muito experimental, continua a faltar um modelo exequível alternativo ao modelo do dungeon. Continuo à espera que ele surja. (E não, os «experimentalismos» indie pouco têm para dar nestes domínios.)

Sérgio Mascarenhas

Podias explicar melhor esta afirmação? Porque é que a dungeon é uma estrutura de drama bem concebida e bem realizada?

sopadorpg.wordpress.com - Um roleplayer entre Santarém e Almeirim
ideonauta.blogspot.com - Viajando pelos

Bem, isso prende-se com umas teorias minhas sobre o rpg enquanto jogo, cruzadas com umas teorias não menos minhas sobre estruturas dramáticas. Vou tentar resumir mas noutro fórum que não cabe neste. Está aqui: https://www.abreojogo.com/2010/02/dungeon_classico_uma_estrutura_de_jogo_bem_conseguida

Sérgio Mascarenhas

[quote=smascrns]O problema é que há maneiras e maneiras de lidar com essa questão que, aliás, nem é uma questão de mecânicas de jogo no sentido tradicional do termo. [/quote]É uma questão específica de como as mecânicas se conectam com a ficção de forma a que cada lançamento de dados acrescente sempre algo para a história - independentemente de esse lançamento constituir um sucesso ou um falhanço, conceitos esses que também são discutíveis.

Burning Wheel e PTA podem não atender a tudo isso que levantaste, mas são exemplos de respostas possíveis a esta questão concreta.

Mas no BRP, como na generalidade dos sistemas de jogo, falhar o teste não quer dizer, «não se passa nada». O que quer dizer é que não se passa nada do que o jogador queria, o seu objectivo concreto, aquilo que motivou o teste. Um teste bem concebido tem consequências, seja para o sucesso, seja para o falhanço.

É claro, a questão é, quem define as consequências? E como? Há aqui um espaço deixado à criatividade dos jogadores, é certo. Normalmente esse espaço não é menos posto em jogo no caso de sucesso no teste porque a descrição da competência inclui a explicitação do que ocorre em caso de sucesso. No caso do insucesso têm de ser os jogadores a interpretar no contexto o que ocorre. A maneira mais fácil é olhar para o oposto lógico do sucesso, mas há outras abordagens.

O problema nas mecânicas que procuram ditar um avanço da história no caso de insucesso ou de insucesso é que partem do princípio de que a história já é conhecida, única forma de tais mecânicas fazerem sentido. Mas em muito jogo a história não é conhecida à partida, e o prazer de jogar está também nesse desconhecimento.

O meu problema com jogos como o BRP é outro, por sinal. E por jogos como o BRP quero dizer jogos com níveis diferenciados de qualidade dos sucessos. O problema é que é comum tais jogos não explicitarem o que cada nível significa e deixarem isso para os jogadores. Do meu ponto de vista isso é um erro de design. O BRP actual não cai nesse erro, até porque tem por detrás três décadas a testar o que fazer com os níveis de sucesso para tudo e mais alguma coisa.

Sérgio Mascarenhas

Malta, esta discussão está a ser muito gira, e eu até gostava de participar nela, mas sugiro que movam os últimos comentários desta "árvore" para um tópico à parte, visto já se terem claramente desviado do sentido original deste tópico.

"A Arte de falhar" parece-vos bem? ;)

"the drunks of the Red-Piss Legion refuse to be vanquished"

Sim, mas a maioria das traduções e legendagens são feitas à velocidade da luz, logo, só se safa quem tem mais de 50% a Translate Foreign Languages.

Nunca pensei que a questão gerasse tão aceso debate. A vossa ajuda foi preciosa para compreender e saber como encarar a questão.

Muito obrigado a todos ;)

O dragão está a dormir, mas quando ele acorda... Laughing

[quote=pontozero]Nunca pensei que a questão gerasse tão aceso debate. A vossa ajuda foi preciosa para compreender e saber como encarar a questão.

Muito obrigado a todos ;)[/quote]

Obrigado ao Jorge/neonaeon pela excelente entrevista. É, de facto, providencial para este tópico.