Tian Xia Parte I - A China e o RPG

Tive o meu primeiro contacto com a ficção chinesa quando ainda estava na primária, em finais dos anos 70, quando passou na televisão uma série que em Portugal, na altura, chamaram Lin Chung o Justiceiro. Mal sabia eu que se tratava de uma adaptação de um dos quatro romances clássicos da literatura chinesa, The Water Margin (Se alguém conhecer o título consagrado desta obra na língua de Camões, faça o favor de mo transmitir. Receio que nem haja, sequer…). Na altura, na minha perspectiva de menos de 10 anos de idade, fiquei fascinado pelos combates e pelas capacidades quase mágicas (algumas mesmo literalmente mágicas) demonstradas pelos protagonistas.

Só muito mais tarde voltei a ter interesse pela China. Suponho que durante a maior parte da minha vida, e especialmente da minha vida de roleplayer, o oriente era o Japão e os seus samurais, com o seu código de honra rígido e espadas mais rápidas que o vento. O único RPG que tratou a China, do meu conhecimento, foi o suplemento GURPS China (1991). Oh, havia também Kara-Tur, para Forgotten Realms, com duas versões de épocas diferentes da China e duas do Japão. E se calhar haveria alguns settings de Fantasy mais obscuros com elementos chineses. Mas até à chegada do Feng Shui Action Movie Roleplaying (1996), só o GURPS tinha pegado na China, e com pouco êxito. Era um manual pequeno que tentava conseguir muito com relativamente poucas páginas – não é fácil meter 2800 anos de história e cultura vivas num manual. Mesmo assim, os jogos posteriores conseguiram-no com muito melhor qualidade.

A China em si não despertava muito a atenção. Era um país fechado cujas únicas noticias tinham sido as manifestações da praça de Tianamen e sua subsequente supressão violenta. Cá, e no ocidente, o que a malta sabia da cultura chinesa era o já referido Lin Chung e os Jovens Heróis de Shaolin de saudosa memória para muitos, embora eu, pessoalmente nunca a tivesse visto. Tinha na altura o preconceito que filme de Kung-fu de Hong Kong = Mau, de ter visto um ou 2 filmes do Bruce Lee e seus imitadores.

Mas 2 fenómenos aconteceram nos anos 90: o milagre económico chinês do “um país, dois sistemas”, e a “nova vaga” do cinema de Hong Kong encabeçada por Tsui Hark e John Woo. A China começou a estar na boca do mundo, e agora tem quase o papel de uma superpotência, quase o igual dos EUA. Estritamente falando, a nova vaga do cinema de HK foi, mais ou menos de 1986 a 1992, quando muitos realizadores, actores e produtores tentaram a sua sorte nos EUA (regra geral, correu mal), temendo muitos a entrega de HK à China em 1996. Mas a percepção dos filmes dessa “vaga” no ocidente só começou, se bem me recordo, em 1994-1996 por instigação de cineastas ocidentais como Quentin Tarantino e actores como Van Damme.

Com isso, a China começou a entrar nos RPGs. Feng Shui, Swords of the Middle Kingdom, Hong Kong Action Theater, foram todos jogos que pegaram em temas chineses com mais profundidade do que antes. Mais tarde, O Tigre e o Dragão despertou na cultura popular em geral, e nos RPGs em particular, o gosto pelo wuxia. Com as suas disciplinas de kung-fu extremamente fantásticas, era uma alternativa possível à fantasia ocidental. Que me lembre, apareceram dois jogos: Weapons of the Gods e Qin.

Gostaria de dizer que estes jogos foram um êxito, mas não posso. A maioria foi votada ao esquecimento. Alguns arranjaram um nicho neste nosso universo que é, já de si, um nicho. E foi o melhor que conseguiram. Na verdade, a China nunca chegou aos níveis de popularidade de, por exemplo, o Japão. Especialmente com a bomba que foi o Legends of the Five Rings.



Deixa-me dar algumas achegas neste texto que acho muito bom.

De facto, enquanto a China passou meio século a negar a sua história e fechou-se em si mesmo, o Japão tratou de divulgar a sua ao máximo. Beneficiaram também da existência do genial Akira Kurosawa. O pouco que ficou da divulgação da história china estava a cargo de Hong-Kong e pouco mais (quem se lembra da série de marionetes japonesas "O romance dos 3 reinos?), enquanto que o japão teve a série "shogun" que definitivamente familiarizou aos ocidentais a sociedade japonesa. Essa é a diferença marcante, creio eu: as séries sobre a china apresentavam aspectos parcelares do que era a china, de forma genérica que poderia ser facilmente transposta para outra sociedade oriental, "shogun" mostrava uma sociedade completamente inconfundível. Nos jogos, até ao advento do shogun total war, a coisa estava meio equilibrada, com jogos bons de ambos os lados (the sword of the samurai para o japão, "The romance of the 3 kingdoms" e outros para a china.

Os anos 90 mudaram muita coisa, e a China começou a divulgar em força a sua cultura e passado: "A maldição da flor dourada", "O tigre e o dragão", "Heroi". Só que vou ser franco, uma história tão longa com aspectos tão diferentes não ajuda a ter uma imagem clara do que era a sociedade chinesa. Em compensação, para o japão, colocas samurais ou ninjas e toda a gente identifica aquilo (quer se passe no século XIII ou XIX), pois já temos décadas de familiaridade.

Entretanto, outro factor em favor do japão, foi a expansão dos animes e mangas que ajudaram ainda mais a divulgar a sua cultura (a china está a tentar fazer umas timidas tentativas, mas até a coreia do sul está à sua frente). É certo que existem alguns desenhos animados vagamente inspirados na China (avatar) feitos por estrangeiros, mas como já tinha dito, é tudo demasiado vago para as pessoas se afeiçoarem e terem uma ideia clara do universo (para além do esteriótipo "mestre de kung-fu sábio com o seu disciplo rebelde").

Para quê toda esta conversa? Quando chegamos aos rpg's, é óbvio que o japão teria de ter "muito" mais atenção (coloco em aspas, porque muito no nosso meio é um termo quase risivel para um hobbie tão marginal) atenção do que a China. Bushido, Sengoku, gurps japan. Mas também nenhum conseguira um exito por aí além. Até que surgiu Legend of the Five Rings que arrasou tudo.

" Robot durante o dia, vegetal durante a noite"

Muito bem!

De facto, a revolução cultural, o maoismo, etc., quiseram destruir, arrasar, passar a zero, a cultura tradicional milenar chinesa. Só em HK, Taiwan, e nas diversas comunidades chinesas noutros países se mantiveram focos dessa cultura. A piorar a situação, os chineses em si são, bem, muito sinocêntricos. Mesmo numa Chinatown na América, ou num bairro chinês europeu, o chinês vive na China. Recria a China onde está. E a China não é para bárbaros estrangeiros. Daí haver uma resistência dos próprios chineses em mostrar-se e à sua cultura aos outros - querem lá saber o que os outros pensam. De facto, a revelação dos filmes chineses (e aqui incluo HK) são para o mercado étnicamente chinês, se não geograficamente. Esses filmes foram primeiro divulgados por ocidentais que os acharam geniais, para poderem ser vistos com olhos de ver cá, ou no caso do Ang Lee e o Tigre e o Dragão, temos um realizador e equipa de filmagem mais habituada a trabalhar no Ocidente e para ocidentais que para chineses (muitos chineses acham o Tigre e o dragão um filme Wuxia para estrangeiros).

Desde que jogo o tema wuxia que vi muitos filmes e séries chinesas e de HK que vão dos anos 60 até ao presente. Fiquei maravilhado com a qualidade, quer técnica quer de representação, de algumas séries chinesas, que se tivessem sido feitas no Ocidente teriam, quase de certeza, sido muitíssimo premiadas. Infellizmente, só se encontram nos sites de fãs, onde uns malucos se dão ao trabalho de as traduzir e legendar (às vezes com notas de rodapé históricas e culturais, coisa extremamente útil!), e vi que os utilizadores desses sites são, na grande maioria, de etnia oriental e que não sabem chinês. Uma pena não aparecerem para outro público, mas nem sequer ocorre aos criadores. Até já têm o maior mercado do mundo, por isso querem lá saber se os "bárbaros" vêm as séries ou não.

Filmes é mais fácil, especilamente os de Hong Kong. Há uns anos foram reabilitados os filmes saídos dos estúdios dos Shaw Brothers e não só saíram muitos em DVD como passam com regularidade nalguns canais de cinema no cabo. Estes, concedendo à maioria uma grande qualidade, acho que serão mais um gosto adquirido. São filmes com convenções próprias, muito diferentes das convenções ocidentais. Não são filmes de arte, mas de consumo - embora muitos com inegavel valor artístico (até Hollywood consegue isso, às vezes, por acidente...) - e para uma cultura muito diferente. Mais uma vez, tal como a "nova vaga", revelados por cienastas e críticos ocidentais, onde aparece sempre o nome de Quentin Tarantino. O mesmo se pode dizer da "nova vaga" de HK - filmes de consumo para o Sudeste Asiático. Embora com uma pitada de intenção artística.

Assim, a China só é encontrada por quem a procura. É normalmente revelada por não-chineses que se deixaram fascinar (como eu). O RPG não é excepção.

[quote=Verbus]Especialmente com a bomba que foi o Legends of the Five Rings.[/quote]L5R beneficia muito de não ser propriamente Japão nem propriamente China, é assim uma combinação dos dois com mongois, mouros e filipinos à mistura.

[quote=Rick Danger]

[quote=Verbus]Especialmente com a bomba que foi o Legends of the Five Rings.[/quote]L5R beneficia muito de não ser propriamente Japão nem propriamente China, é assim uma combinação dos dois com mongois, mouros e filipinos à mistura.

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Toda a razão. O L5R é uma pizza oriental, cuja base é o Japão. Mas é uma grande base.

[quote=Verbus]

Mesmo numa Chinatown na América, ou num bairro chinês europeu, o chinês vive na China. Recria a China onde está. E a China não é para bárbaros estrangeiros. Daí haver uma resistência dos próprios chineses em mostrar-se e à sua cultura aos outros - querem lá saber o que os outros pensam. De facto, a revelação dos filmes chineses (e aqui incluo HK) são para o mercado étnicamente chinês, se não geograficamente. Esses filmes foram primeiro divulgados por ocidentais que os acharam geniais, para poderem ser vistos com olhos de ver cá, ou no caso do Ang Lee e o Tigre e o Dragão, temos um realizador e equipa de filmagem mais habituada a trabalhar no Ocidente e para ocidentais que para chineses (muitos chineses acham o Tigre e o dragão um filme Wuxia para estrangeiros).

Desde que jogo o tema wuxia que vi muitos filmes e séries chinesas e de HK que vão dos anos 60 até ao presente. Fiquei maravilhado com a qualidade, quer técnica quer de representação, de algumas séries chinesas, que se tivessem sido feitas no Ocidente teriam, quase de certeza, sido muitíssimo premiadas. Infellizmente, só se encontram nos sites de fãs, onde uns malucos se dão ao trabalho de as traduzir e legendar (às vezes com notas de rodapé históricas e culturais, coisa extremamente útil!), e vi que os utilizadores desses sites são, na grande maioria, de etnia oriental e que não sabem chinês. Uma pena não aparecerem para outro público, mas nem sequer ocorre aos criadores. Até já têm o maior mercado do mundo, por isso querem lá saber se os "bárbaros" vêm as séries ou não.

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Os Japoneses também são assim, só que por complexos históricos disfarçam um pouco. Ainda me lembro do desprezo que uma japonesa mostrou quando eu lhe disse que gostava de cinema japonês e ela disse-me" "Ah sim, os sete samurais do Akira Kurosawa". Este no final da vida só conseguiu realizar filmes graças aos seus fãs americanos, os japoneses consideravam que ele fazia filmes para estrangeiros. Mas apesar desse sentimento, provavelmente por uma questão de pragmatismo comercial, os japoneses lá foram vendendo filmes para fora. Ora os chineses actualmente com um mercado interno de mais de mil milhões, mais umas centenas de milhões extras fora do país, podem como disseste ignorar os mercados ocidentais, por uma questão de escala.

" Robot durante o dia, vegetal durante a noite"

[quote=Verbus]

Toda a razão. O L5R é uma pizza oriental, cuja base é o Japão. Mas é uma grande base.

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Eu gosto dessa Pizza! Yum yum! Nom nom nom... Tongue out

Por outro lado, tens a popularidade quase universal dos Animes e Mangas. Que eles não se importam nada de exportar. Ainda assim, dizem-me que cá fora apenas chega uma (pequena) fracção da produçãod e BD e animação japonesas.

[quote=Verbus]

Por outro lado, tens a popularidade quase universal dos Animes e Mangas. Que eles não se importam nada de exportar. Ainda assim, dizem-me que cá fora apenas chega uma (pequena) fracção da produçãod e BD e animação japonesas.

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Sim, é verdade, eles lá tem mais revistas de manga estilo a antiga revista "Tim-Tim" (em que cada número contém contribiuições de vários autores) do que nós temos revistas de desporto e de "intrigas sociais".

Entretanto tenho de admitir uma falha na minha cultura geral: nunca experimentei o L5R.

" Robot durante o dia, vegetal durante a noite"

[quote=kabukiman]

Entretanto tenho de admitir uma falha na minha cultura geral: nunca experimentei o L5R.

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You dishonor the clan! SEPPUKU JÁ!!!!! Fighting

[quote=Strilar]

[quote=kabukiman]

Entretanto tenho de admitir uma falha na minha cultura geral: nunca experimentei o L5R.

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You dishonor the clan! SEPPUKU JÁ!!!!! Fighting

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Nem eu. Nem estou muito interessado, há muitos mais RPGs à frente. E o Japão já está mais que visto. Não falo só em RPGs, mas board e wargames e jogos de computador com o Japão feudal como tema há mais que muitos.

Ora aí está um atitude que não partilho . Mesmo que o tema esteja estafado, se aparecer algo que consiga apresentar o tema de forma refrescante, porque não experimentar? Claro que tenho de admitir que se não joguei o L5R foi por uma questão de snobismo: estava encantado com o Sengoku, que tratava do Japão real, e aquela mixórdia não me agradou.

"Robot durante o dia, vegetal durante a noite"

Sim, mas... Tenho tantos jogos há frente, incluindo coisas que queria experimentar há décadas, que o tema estafado pesa um bocado na balança.

Onde me envergonho é que o L5R foi o jogo preferido de gente que não gosto nem pintada de fresco. Ficou culpado por associação... Sim, é vergonhoso e indigno, mas, infelizmente, isso pesa um bocadinho nas minhas prioridades de jogo...EmbarassedEmbarassedEmbarassed

Nunca deixei de jogar um jogo porque outrém com quem eu não simpatizava gostava do mesmo jogo. A vida é curta demais e há que aproveitar. Pura e simplesmente, não jogo o dito jogo com as pessoas com quem não simpatizo. Nunca experimentei L5R porque na altura o grupo foi a votos e optou-se por wuxia. Passados estes anos todos, ainda gostaria de experimentar mas já não está na lista de prioridades, não porque seja mau (não é) mas porque os meus gostos pessoais foram-se alterando com os anos.