Tiro ao Alvo (PTA & Issues)

Estava a escrever o resumo da última sessão de PTA quando entrei numa “tangente” sobre os issues e a forma como eles funcionam dentro das regras. A tal tangente cresceu e tornou-se tão grande que ganhou direito a um post próprio aqui no meu blog.

É que isto dos issues tem muito que se lhe diga, amigos. À primeira vista parecem apenas uma forma simples – e relativamente bidimensional – de atribuir características psicológicas, ou profundidade, ou “objectivos de vida“ aos personagens. Jogadores habituados a escrever páginas e páginas de background e/ou a definir as personalidades dos seus personagens através de listas meticulosas de atributos, habilidades, características psicológicas, etc, julgarão que não pode haver nada que um personagem criado em PTA possa fazer por eles. PTA, afinal, é um jogo onde cada personagem tem um atributo (Screen Presence), duas ou três habilidades/características, dois ou três contactos, e um issue. Como é que algo tão simples pode fazer o que quer que seja melhor do que aquilo que eles já fazem com tantas páginas de background e personagens cuidadosamente definidos?

É tão simples que passa completamente despercebido. Só me dei conta depois de produzir alguns episódios; nem passando tanto tempo no lugar do jogador percebi o quão longe vai a coisa. O issue não é algo que pretende definir o vosso personagem. O issue não quer actuar como uma característica de personalidade ou falha de carácter do vosso personagem. O issue não pretende ser um segredo negro ou momento escuro do passado do vosso personagem. O issue, amigos, é um alvo na vossa testa. Serve de mira ao produtor, aos outros jogadores, e até a vocês próprios, para manterem apontada a história naquela mesma direcção. São o Norte das vossas bússolas. São o cimento que cola a história – seja ela sobre o que for, FC, Fantasia, Terror ou Vida Real – ao que realmente importa: o conflito interno do personagem, sem qual as explosões, efeitos especiais e fogos de artifício são só isso: enfeites sem significado.

Vão-me dizer que é possível ter – e que todos têm exemplos disso – histórias cheias de significado e profundidade sem querer saber ou usar o raio dos issues para nada. Mas claro que sim! Os issues são simplesmente uma ferramenta, que serve para nos ensinar (ou recordar) e pôr a aplicar na prática alguns conceitos básicos de como se constrói uma boa história; mais, ele serve também para nos ajudar a manter focados numa dada linha condutora, ajudando-nos a não perder o rumo e a diluir a nossa história tanto que ela se torne numa massa amorfa que toca em tudo mas que ao mesmo tempo não toca em nada de especial.

Como em tudo na vida, há muitas e variadas regras de ouro para criar uma boa história. Não acreditam? Eu tenho nas prateleiras quase uma dezena de livros que pretende ensinar a criar um óptimo conto/noveleta/romance de Terror/Fantasia/FC, e se forem a uma livraria virtual encontrá-los-ão às centenas: como criar personagens realistas, como criar tramas imparáveis, como fazer descrições brilhantes, como dar vida a settings, como inspirar terror, etc. Até há livros que nos ensinam a ser originais; não é irónico?

Mas como é que se pode criar algo de novo, original, excitante, interessante, seguindo fórmulas gastas e cansadas? Não vos posso dizer se é ou não provável, ou até possível, chegar ao ouro limitando-nos a seguir uma fórmula; no entanto, posso dizer-vos que saber as regras de ouro, conhecer a extensão das suas vantagens e dos seus variados usos, e, acima de tudo, conhecer o “porquê‿ de elas funcionaram, é entender quando é que as podem – e devem – “quebrar‿ para produzir algo mais potente, mais eficaz, algo novo!

É a velha história do pintor que se tornou mundialmente conhecido pela inovação, e pela criação de um género totalmente novo de pintura, seguindo um caminho tão simples como aprender primeiro a dominar na perfeição todas as leis e aspectos da pintura para depois as subverter, perverter e quebrar a todas sem excepção em cada um dos seus quadros. Não me perguntem é qual é o pintor, que eu de pintura não percebo nada. É apenas um pequeno aparte de um dos meus professores de liceu que, tanto sentido fez para mim, que nunca me esqueci da história nem nunca me deixei de reger por essa máxima.

Não digo que não seja válido seguir a via do nosso instinto e tentar simplesmente criar aquilo que achamos que devemos criar da forma como o pretendemos criar. Simplesmente acho que, optando por aí, estamos deliberadamente a ignorar todo o conhecimento reunido de inúmeras gerações de criadores e artistas que vieram antes de nós. Arriscamo-nos a cair em erros facilmente evitáveis, a seguir por caminhos primitivos já trilhados há muito anos quando há alternativas mais sofisticadas que podíamos perseguir até paragens mais interessantes. É claro que também nos arriscamos a criar algo de totalmente novo, brilhante, original, com uma perspectiva inteiramente fresca e não adulterada pelas obras e ensinamentos de outros… simplesmente, a menos que sejamos génios brilhantes e semi-loucos, acho que é seguro dizer que não há grandes hipóteses de isso acontecer, pois não?

É por isso que eu gosto de regras que curiosamente outros acham limitantes (ou até castradoras da imaginação) como: Kickers, Bangs, Dark Secrets, Issues, etc. O que eu gosto nelas é que funcionam; mesmo que a pessoa não saiba onde quer chegar, este tipo de leis e regras de ouro seguram-lhe na mão e, com um bocado de sorte, vão levá-la a um admirável mundo novo que antes permanecia escondido. Quando a pessoa já souber como lá chegar sozinha, acho perfeitamente natural que não precise de nada nem ninguém para lhe segurar a mão, e que queira explorar o novo mundo sem constrangimentos ou impedimentos e testar outras aproximações radicalmente diferentes.

Pegando na metáfora do Narrativista como um sniper com o rifle apontado à premissa, os issues, bem usados, podem ser a mira que vos ajuda a acertar mais vezes na mouche. Como tal, estimem-na bem! E lembrem-se que, já que é a vossa mira, devem garantir que é uma mira que aponta para onde vocês querem. Por exemplo, se histórias sobre lealdade, honra e traição não vos dizem muito, não criem issues que vos vão colocar exactamente no meio de uma história desse género. Deve ser parecido com tentar chegar ao pólo sul mantendo o rumo fixo na direcção que a bússola aponta. :wink:

Concordo a 100%!

O fim de semana passado comecei a produzir a minha 1ª série de PTA: The Clash, uma série sobre ex-criminosos que em vez de cumprirem pena trabalham para os serviços secretos Britânicos. Ter os issues bem definidos ajudou imenso a saltarmos os habituais precalços dos jogadores novatos em PTA (andar a tentar resolver mistérios, p ex) e a fazermos uma sessão 100% Narrativista e muito, muito porreira.

Eu não estava à espera: os jogadores são um grupo Gamist Hard-Core habituado a combates de 4 horas no ShadowRun. Por isso mesmo investi muito na escolha dos issues durante a criação de personagem, com montes de perguntas e brainstorming em grupo até toda a gente ter algo em que o Produtor (eu) conseguisse agarrar, e com que se identificasse.

Depois foi uma questão de criarem contacts, nemesis e edges ligados ao issue. Metade dos jogadores apanhou logo a ideia, para os outros foi simples: às vezes bastam duas ou três perguntas para por as cabeças a pensar :slight_smile: Por exemplo, se o issue é “odeio-me porque a minha vida nunca teve significado”, um contacto “activista política” pode tornar-se masoquista - foi fácil criar a ideia que havia uma relação amor-ódio disfuncional baseada no facto de ela ter um sentido para a vida e ele não :slight_smile:

Depois tornou-se fácil. Todos os conflitos que aconteceram rodaram em torno dos issues. Os jogadores começaram a perceber a ideia do PTA quando, em vez de eu lhes pedir “rola para ver se descobres pistas”, eu dizia “tu descobres as pistas, mas vamos olhar para o teu issue: precisa de ter a sua importância reconhecida pelos outros - que tal, se ganhares o conflito descobres tudo sozinho, se perderes tens q pedinchar até te darem as pistas por favor”. A malta entrou depressa na onda e começou a pedir stakes que fossem relevantes para o issue dos seus personagens - e a suar quando se lançavam os dados :slight_smile:

Agora o próximo passo, que começámos a dar timidamente, é orientar a história para conflitos em que as decisões sobre os issues não sejam simples - um exemplo da última sessão, “o meu issue é querer limpar a imagem de criminoso para que a minha filha me admire - e agora a minha filha foi raptada e só recorrendo ao mundo do crime posso salvá-la”. Isto foi básicamente a última cena + next week on de um dos jogadores. Parece lógico que em Narrativismo é isto que se pretende, mas lembrem-se que estamos a falar de jogadores Gamist Hard-Core e de um GM (eu) que é geralmente Sim-Setting :slight_smile:

Tudo isto foi muito fácil graças ao facto dos issues dos personagens serem fortes e terem sido aprofundados em debate. Primeiro, porque eu como Produtor podia centrar todos os conflitos (e stakes) no ponto central de cada jogador, de todas as vezes que se rolava (chama-se a isto usar o “obvious stick” ;). Segundo, porque os jogadores perceberam rapidamente que isso tinha piada e usaram os seus issues para os seus próprios conflitos - e o único jogador que não achou piada decidiu mudar de issue a meio do episódio e as coisas começaram a correr melhor (noutros jogos estou habituado a, quando não gosto do que se passa, não perceber porquê)…

Claro que ajudou bastante ler os precalços todos do grupo do JMendes para os evitar, e jogar com o Ricmadeira para aprender - foi provavelmente a principal razão que me fez perceber que o foco estava nos issues. Mas sabem o que eles dizem sobre como é que se identifica um pioneiro - é o gajo com flechas espetadas no corpo :wink:

Isto do foco nos issues é um bom conselho do Ricmadeira!

JP

Thanks, chefe! É óptimo saber que, se estou completamente alucinado, há mais malucos por aí, eheh. :wink:

Acima de tudo, é óptimo saber que o PTA também resultou assim tão bem para o teu grupo de candidatos “improváveis”! Este jogo é ouro!

Não te esqueças q sem tu, JMendes, B0rg etc a “partirem pedra” com o Heritage, o meu jogo teria provavelmente corrido bem pior…

JP

Bem, a ideia original foi mesmo essa, experimentar novos sistemas, explorar novos jogos, etc! :slight_smile:


[B0rg]
We r all as one!!
We are The Borg. We are Eternal. We will return. Resistance is Futile…

If freedom is outlawed, only outlaws will have freedom!