Passando ao lado das nossas preferências em termos de sistemas operativos, telefones móveis, maior ou menor tolerância a políticas de DRM e controlo pessoal e privado dos aparelhos electrónicos que compramos, esta notícia é relevante para aquilo que aqui nos traz e nos une, os jogos de tabuleiro.
Na minha opinião é relevante de uma forma divisora... Por um lado agrada-me e parece-me positiva para o hobby. Por outro aborrece-me e parece-me perigosa para alguns dos aspectos mais interessantes do próprio hobby.
Pelo lado positivo, claramente vai trazer maior visibilidade aos jogos que jogamos e às empresas que os produzem. Isso poderá trazer mais gente para o hobby, torná-lo menos estranho a quem nunca ouviu falar e facilitar e amenizar a recepção e reacções à sua prática. E para quem, como eu, defende que a divulgação é ainda os aspecto mais importante para o crescimento do hobby, isto será bom.
Sem dúvida que a presença dos "nossos" jogos na AppStore poderá espicaçar a curiosidade de alguns entre os milhares que a visitam. Sem dúvida que a perspectiva de pagar uma soma pequena por um "jogo de tabuleiro" poderá fazer com que mais e mais pessoas os experimentem e apreciem e acabem por pensar na possibilidade de o tentar jogar "ao vivo".
Um outro aspecto potencialmente positivo será o lucro obtido pelas editoras. Este influxo de capital poderá facilitar a vida às editoras e isso dar-lhes mais espaço de manobra para arriscarem na edição de novidades.
Mas isto tudo são ses e talvez...
Por outro lado, existe um potencial negativo pelo menos igualmente grande.
Permitam-me um breve interregno para falar de um artigo que li há umas semanas. Com o título Naufrágio, José António Saraiva falava do afastamento que cada vez mais se vai notando entre as pessoas, o isolamento e a solidão disfarçados pela facilidade de comunicação. Com inícios na presença e proliferação da televisão que foi matando o hábito da conversa à refeição entre a família, evoluindo para a dispersão de cada membro do grupo (que aqui já vai além das famílias) para o seu aparelho digital, seja o computador, o telemóvel ou a incrível panóplia de aparelhos que cada vez mais fundem e confundem as funções de ambos, vimos, de facto, assistindo à gradual substituição do hábito de conviver pelo hábito de comunicar.
Não embarco em dramatismos e previsões apocalípticas das consequências deste fenómeno, mas apercebo-me da sua existência e vejo o nosso hobby, em parte, como uma reacção ao mesmo.
Daqui poderemos pensar se esta invasão dos jogos de tabuleiro ao mundo digital, ou dos suportes digitais aos jogos de tabuleiro, tanto se pode ver de um lado como de outro, não poderá ser o potencial início de uma substituição do cartão, madeira e plástico que tanto gozo nos têm dado pelo brilho de um ecrã.
Será muito mais fácil transportar um aparelho tipo iPad para os nossos encontros e ter lá umas dezenas de aplicações que nos permitem jogar do que fazer o esforço de carregar com alguns quilos numa mala para ter as mesmas possibilidades. Com a vantagem de que o setup e arrumação dos jogos serão praticamente instantâneos num aparelho destes por oposição a um aspecto que frequentemente é apontado como factor negativo para alguns jogos.
Mas fará sentido deslocar-mo-nos a um encontro para jogar se o podemos fazer no conforto do nosso sofá, em casa, sem preocupações com a chuva, o lugar para estacionar e outros inconvenientes da deslocação? E as convenções, os encontros nacionais. Que propósito servem neste cenário? Da resposta a estas questões dependerá a continuidade do esforço de tentar manter a ideia e a necessidade de convívio contra a sua mera substituição pela comunicação, existindo agora mais uma forma de comodamente o fazer sem perder a possibilidade de ter o prazer de jogar estes "nossos" jogos. Daqui poderá surgir a impossibilidade de como tão bem o pôs o Johnny Be Good cada um de nós saber porque não fica em casa.
Mas, tal como antes, tudo isto são ses e talvez...
A ver vamos.
Não será isto que me fará comprar um iPad. Fico talvez à espera de um aparelho similar que não tenha as mesmas desvantagens (que as há), mas nunca será para jogar jogos de tabuleiro... Para ler e-books ou e-comics, para ver filmes, navegar na internet, ouvir música, até talvez fazer algum trabalho, tubo bem. Mas jogar jogos de tabuleiro, isso quero continuar a fazer como faço. Com cartão, madeira, plástico e, principalmente, com pessoas. Ali, à minha frente, para as observar a pensar, para as ouvir trocar ideias, para as ver esforçarem-se com prazer para vencer e até para as ver sorrir ao derrotar-me. Não há quase nada melhor...