Hoy, :)
<baiting mode=shameless>Enquanto vou esperando para ver se a autora do post que deu origem a isto aparece ou não para dar um ar de sua graça ;) </baiting>, vou dedicar-me a mais umas generalidades, em preparação para o próximo parágrafo que irei desmontar. As generalidades de que vou falar vão directamente ao encontro do vocábulo role, conforme aparece na sigla RPG.
(Já que os disclaimers estão na moda: mais uma vez, eu não pretendo estar a colocar rótulos naquilo que outras pessoas fazem ou deixam de fazer. O que está aqui é o meu entendimento. Desde que percebam do que é que eu estou a falar, o importante são os conceitos, não a terminologia.)
Origens
Os RPGs têm uma origem radicalmente diferente do termo que lhes deu o nome.
Antes de ser um termo técnico, o termo role-playing era meramente descritivo do acto do desempenho (playing) papéis (roles), no âmbito de uma peça de teatro.
O termo role-playing como termo técnico nasceu das ciências sociais e começou por ser um termo aplicado a técnicas de investigação sobre role theory. (Para quem quer saber o que isto é, a wikipedia explica.) Só um pouco mais tarde é que foi aplicado ao aconselhamento e à terapia propriamente dita. Por esta altura, temos a sociologia a definir role como "a set of rights, duties, expectations, norms and behaviour a person has to face and to fulfill" (wikipedia to the rescue!). Esta definição tem já pouco a ver com a representação teatral. Estamos, mais ou menos, nas décadas de 1920, 1930.
A herança dos RPGs em termos de jogos, no entanto, e em particular, em termos de jogos de combate, é bastante mais antiga, e remete para o Go e para o Xadrez. Em termos mais práticos, o wargaming de miniaturas, tal como é conhecido hoje, foi inventado em 1780, por um caramelo chamado Helwig, algures em Brunswick. Santinho. Enfim, long story short, fast forward até às décadas de 1960, 1970. Evoluções do war gaming foram parar aos chamados small unit rulesets, das quais o mais significativo, do ponto de vista histórico, foi uma cena chamada Chainmail, de um gajo mais ou menos conhecido, que dava pelo nome de Gary Gygax. Sim, esse, o inventor do Dungeons and Dragons.
Não sei muito bem quando é que os "one-man-unit wargames" ganharam o nome de RPGs, mas uma coisa parece evidente: historicamente, nos primórdios dos RPGs, o termo "role" tinha mais a ver com a definição sociológica do que com os a definição teatral.
So What?
So what? So, a diferença entre role social e role teatral é, na minha experiência, um dos maiores divisores entre os adeptos dos RPGs. Como exemplo pontual, apresento o seguinte intercâmbio:
[quote=JMendes]o "tempero", para mim, é o diálogo in-character, as descrições visuais, os detalhes de ambiente e tudo o mais que dá aquele sabor adicional. A carne, o peixe e as batatas são as decisões e acções "reais" (no espaço imaginado) dos personagens.[/quote][quote=Verbus]Ah, mas eu incluo "os diálogos in-character, as descrições visuais, os detalhes de ambiente" entre as decisões "reais" (no espaço imaginado) das personagens. Fazem mesmo grande parte daquilo que eu acho que é o "good stuff" no rpg.[/quote]
Embora nos estejamos a compreender um ao outro bastante bem, eu e o Zé estamos claramente a olhar para a coisa de perspectivas radicalmente diferentes em relação ao termo. Ele está a falar de tudo aquilo que é essencial e fundamental ao bom desempenho de um role teatral. Chamemos-lhe Campo A. Eu estou a falar do cerne do que é um role social, nomeadamente, o tal conjunto de normas, direitos, deveres e explicativas que condicionam o comportamento dos indivíduos. Chamemos-lhe Campo B.
(A minha resenha histórica não se destina a reivindicar algum tipo de "razão" minha sobre a de outras pessoas. Destina-se apenas a explicar, e talvez justificar, um ponto de vista lexicográfico.)
A Falsa Questão da Falsa Questão
<voz da oposição> "Mas então, ouve lá, tu não vês que tanto a componente teatro como a componente papel social são necessários para o bom role play?"
(Não necessariamente, mas percebo e aceito o ponto. Continua.)
"Então se são ambos importantes, não será razoável admitir que possamos ter à mesma mesa gente de ambos os campos, que possam jogar juntos? Não é possível a uma pessoa que goste da vertente teatro partilhar uma sessão de jogo com uma pessoa que goste da vertente social?"
(É, claro que é.)
"Então se é, essa 'divisória' não será uma falsa questão? Um mero exercício académico sem grande impacto real para os jogadores na prática? É que teoria até é giro e tal, mas eu gosto é de jogar."</voz>
Pois. Não. Na realidade, há muito boa gente por aí a ter sessões mediocres, precisamente por causa disto. Ou seja, nas palavras de um anúncio que por aí anda, "poder, pode, mas não é a mesma coisa".
(Já agora, se alguém me desse um euro por cada vez que eu já ouvi aquela última frase do "eu gosto é de jogar", eu comprava os direitos das músicas todas dos Abba e ia viver dos rendimentos para Chamonix ou para Vail.)
Tragédia Grega Em Três Actos
A seguinte história talvez vos seja familiar:
- Um jovem rapaz, fã devoto dos trabalhos do ilustre J.R.R.Tolkien, ouve falar de RPGs. "Se gostas dessas cenas dos elfos e dos orcs, vais adorar. Uma coisa é ler, outra coisa é estar lá e viver aquilo." Os mais atentos de entre vós vão notar que esta pequena frase entre aspas se adapta perfeitamente a ambos os campos. Mas, por esta altura, este nosso jovem rapaz, verde que é nestas andanças, não sabe se está no campo A ou no campo B. O pobre coitado nem sequer sabe o que é um campo.
- O nosso herói acaba por arranjar tempo e/ou os amigos certos para participar numa dessas sessões do "role-play". Tudo aquilo é estranho e nebuloso e tem uma linguagem própria que o jovem não domina. Metade do tempo, não percebe muito bem o que se está a passar. Mas os amigos são porreiros e compreensivos e ele começa a entrar na onda. De repente, há uma cena que lhe acerta em cheio e lhe entra pelo âmago adentro. O jovem fica verdadeiramente entusiasmado e percebe o potencial dos RPGs. Continua sem saber qual é o seu campo, ou sequer que o conceito existe. A cena que lhe acertou pode ter sido uma descrição particularmente vívida, ou pode ter sido a consequência inesperada de uma decisão particularmente difícil. Os amigos também não sabem. Como a representação e a decisão são mais ou menos simultâneos, à falta de linguagem especializada, é-lhes impossível discutir o que é que acertou tão profundamente no jovem.
- A partir daqui, a história precipita-se. Os RPGs tornam-se numa parte importante da vida do nosso jovem, que até já não é jovem, e sim um homem feito, casado e pai de filhos. As cenas divertidas continuam a acontecer. Com a experiência, vem a profundidade do apreço pelo hobby. Mas vem também outra coisa. Vem a familiaridade e o esmorecer do deslumbramento do que é novo. Vem a amarga realidade que cerca de metade do que se passa nas sessões é pura e simplesmente uma seca. "Despacha-te e decide-te, homem, responde ao duque, que eu quero ouvir o que ele tem para nos dizer." ou "Porra, cala-te lá com as saudações e salamaleques e diz-me o que queres do duque." são pensamentos que atravessam a cabeça do nosso herói. Não ambos, notem. O primeiro passa-lhe pela cabeça se ele fôr do campo A; o segundo, se ele fôr do campo B. Mas, como ele é simpático e bem educado, cala-se e acena que sim com a cabeça, enquanto se aproxima o tempo de ir para casa dar banho ao bébé.
- Nesta semana, não lhe apetece ir jogar. Ele não sabe muito bem porquê, notem, já que os RPGs são extraordinariamente divertidos. Se calhar, hoje, está mais cansado. Acaba por inventar uma desculpa qualquer e fica em casa a jogar playstation com o filho mais velho. Quality time, chama-se a isto hoje em dia. Na semana seguinte, é a mesma coisa, e na semana a seguir, também. De repente, passaram dez anos. Ficam as memórias saudosas, mas fica também a convicção, errónea e trágica, que "essas coisas dos jogos eram para quando eu era mai'novo".
Ferramentas vs Processos - Revisited
Lembram-se do meu post anterior sobre teoria? Deixem-me re-analisar o conceito à luz destes dois campos:
Campo A (role teatro): as normas, as condicionantes, a história, isso são as ferramentas, os constructs. O importante, o "good stuff" dos RPGs, são as descrições, as visualizações, o diálogo. O processo é acerca da exploração e da interacção com o mundo imaginário.
Campo B (papel social): as descrições, as visualizações, o diálogo, isso são as ferramentas, os veículos de comunicação. O importante, o "good stuff" dos RPGs, são as tomadas de decisão, as suas motivações e as suas consequências. O processo é acerca da história que nasce destas decisões e consequências.
Get it? As pessoas do campo A e as pessoas do campo B não estão sequer a jogar o mesmo jogo. É virtualmente impossível construir e manter com um mínimo de longo prazo um nível de diversão alto para toda a gente, quando há pessoas dos dois campos à mesma mesa.
O que acaba por acontecer, graças à boa e velha adaptabilidade infinita do ser humano, é que o jogo acaba por tender para um dos campos, aquele que estiver mais bem representado à mesa em função das forças das personalidades dos jogadores. Por amor ao hobby e às memórias "daquela sessão", por pura antecipação de possibilidades que podem nunca vir a acontecer, as pessoas acabam por aceitar que "é assim que se joga" e acabam por aprender a tirar partido de uma diversão que é essecialmente mediocre.
Por contraste, uma sessão de RPG constituída por jogadores todos do mesmo campo, seja A ou seja B, é uma das experiências mais vibrantes e apaixonantes de todo o portfolio da actividade humana.
Finais Alternativos
- Alguém escreve umas larachas altamente paternalistas e o nosso homem apercebe-se de repente que há por aí uma série de gente agarrada a termos pomposos como "narrativismo" e outras mariquices. Bof. Há que os identificar e pôr fora, para finalmente podermos jogar em paz, como nos apetece. O nosso herói do campo A foi salvo do esquecimento trágico.
- Alguém escreve um artigo de opinião, algo mordaz mas também altamente esclarecedor e informativo, e o nosso homem apercebe-se de repente que o teatro aborrecido e infindável não é central ao jogo e nem sequer tem que existir. Há que ir à procura dos jogos que são realmente acerca de alguma coisa, para finalmente podermos jogar em paz, como nos apetece. O nosso herói do campo B foi salvo do esquecimento trágico.
Qualquer semelhança entre as duas alternativas não é uma coincidência
Cheers,
J.