Perguntou-se aqui porque é que eu odeio tanto a Forge e as suas teorias, e acho que sim, isso merece que se explique.
Eu sou velho nestas lides. Tive o D&D quando andava no liceu, e segui de perto a evolução do RPG desde, pelo menos, 1986 até agora, pelo menos desde que comecei a frequentar o DJs, clube de jogos existente no Saldanha, que passou também a ter uma loja, e que era um excelente local para se saber as novas da indústria. Nessas alturas apareciam sempre as histórias que o RPG era uma ameaça à moral e bons costumes, um centro de recrutamento para seitas satânicas, e coisas afins. Tão sério isso foi levado que, anos antes, a TSR tinha retirado da 2ª Edição do AD&D toda e qualquer menção a diabos e demónios.
Como bons portugueses e europeus, nós riamo-nos e gozávamos à brava com isso, especialmente quando em França se criavam jogos como o In Nomine Satanis, em que se jogavam demónios que, para recuperar power points, tinham de fazer coisas inomináveis às pessoas. Mas não deixava de me perturbar a ignorância que as pessoas julgavam o nosso hobby. Muito de vez em quando apareciam noticias de assassinos e violadores de mulheres e sepulturas que eram jogadores de D&D e Call of Cthulhu, sugerindo mal disfarçadamente uma relação directa entre o jogo e o crime que cometeram. Na em que surge o Magic: The Gathering, e a indústria do RPG estava em queda, surge em França um psicólogo que faz emissões de televisão dizendo também que o RPG era uma seita muito perigosa.
Falava de uma ignorância total: dizia que os jogadores estavam escravizados pelo mestre do jogo e faziam tudo o que ele dissesse, no jogo ou na vida. Deve ter sido um dos pontos mais baixos da percepção do RPG em França. Isto ainda continua, se bem que não nos mesmos países. Há um par de anos mostrei o RPG espanhol Capitán Alatriste a um de nuestros hermanos que me disse logo: “Epá, não vais matar ninguém, pois não?” A única coisa que sabia do RPG foram notícias de uns gajos que mataram outro e que jogavam RPG. Estranho que não se fala nunca nos bombeiros e paramédicos que jogam, também os deve haver…
Na mesma época tive contactos com a cientologia, que ainda era mal conhecida cá. Vi de perto o funcionamento de uma seita, se bem que (felizmente) durante pouco tempo. Mas isso, e, claro, as acusações feitas ao RPG, despertaram-me o interesse por esse fenómeno. Assim, na internet e em diversos livros, passei a ter algum conhecimento sobre os elementos constitutivos da mentalidade de uma seita. E “seita” numa acepção mais sociológica que religiosa, que inclui esta última mas não se limita a ela. Pode incluir grupos de apoio, gangs, clubes, e outros grupos (cujas doutrinas não têm de ser religiosas, em pouco mais ou menos) que tenham certas características. Dessas interessaram-me as seguintes: o tentar atrair pessoas com problemas ou insatisfeitas; o dar uma solução simples para os seus problemas; a utilização de uma linguagem hermética que serve tanto para isolar os membros como para os identificar, e aos estranhos (que não a entendem); um lider carismático detentor da verdade absoluta, distinção clara entre “eles” e “nós”.
Pouco antes de ter contacto com o pensamento da Forge, estive a explicar a um amigo e (na altura) colega de trabalho o que era o RPG, coisa que ele desconhecia de todo. “Ah,” responde ele meio a brincar, “é uma bela seita que tens aí…” Faço um riso amarelo, o gajo não percebe nada disto, explico outra vez e ele diz “Sim, é uma seita porque não é um divertimento mainstream”. Calo-me, a ferver de raiva. Ele não sabia de toda a bagagem que isso trazia ao hobby e as acusações feitas ao longo dos anos. Ele nunca mais largou isso, e quando alguma vez lhe dizia que ia jogar, lá vinha ele “Ah, vais à reunião da seita…” Sorriso amarelo da minha parte.
O meu contacto com a Forge foi repentino. Antes só tinha ouvido uns zunzuns de uns jogos independentes “esquisitos”, e de uma teoria por detrás, nada de importante. Um jogador que entra de novo no grupo de RPG onde jogava começa a extolar as virtudes de “uma nova maneira de jogar”, que eu estava a achar interessante, mas que ainda não tinha entendido. De repente, outra pessoa, a de quem mais tinha ouvido falar nos indies e nas teorias, em moldes jocosos e altamente ofensivos, “converte-se” totalmente, começa a dizer coisas terríveis acerca de como jogamos, a dizer horrores de jogos que numa questão de dias estava a fazer força para jogar, a defender o roll play quando antes isso lhe metia raiva, uma mudança de 180º em relação à atitude global que tinha em relação ao RPG: De repente o que é bom é mau e o que é mau é bom. Fiquei banzado! Depois descobri que isso teve origem num “retiro” de um fim-de-semana. Analisando as origens dos jogos, descubro a Forge. E o interessante: descubro as características de uma seita que já expus acima.
Aí fiquei aterrado e furioso. Já não basta o hobby ser acusado de ser uma seita, há uns gajos que criam uma de facto, dando razão a todos os bocós ignorantes! Ah, tenho de pôr uma ressalva: tirando as seitas que são fraudes criadas para um pequeno grupo ganhar dinheiro ou poder sobre os outros membros, nenhuma seita se vê como tal, e nenhuma em absoluto se assume como tal. Nenhum membro de uma seita acha que está numa seita e vê o seu grupo como tal. E, de facto, o grupo de aderentes e admiradores da Forge não é uma seita nem no sentido lato. Cumpre é os requisitos acima descritos. Mas, para mim, que não sou sociólogo, chegaram.
Para mais, o grupo de jogo onde estávamos acabou à conta disso, e descobri que nem sequer era o primeiro: já várias campanhas antes tinham acabado por alguém ter descoberto a teoria e se “ter convertido”, e depois não parar de tentar impor essa “boa nova” a um grupo não interessado e que estava bem, muito obrigado, e sem problemas até ter lá chegado o “missionário”. Tenho de avisar que os termos entre aspas são em sentido figurado. Claro que não vejo conotações religiosas nas teorias do Ron Edwards. Uso e sempre usei essa comparação como retórica.
Este foi o histórico da componente mais racional do meu ódio. Até eu fiquei surpreendido com a intensidade e a longevidade deste (até agora, bolas! Já passaram quanto? 3, 4, 5 anos?). Fiquei tão espantado que me dei ao trabalho de ler todos os artigos do Ron Edwards, e comprei uma série de jogos de autores da Forge. Incluindo três livros de Sorcerer. Quis saber se estava enganado e era só uma violenta reacção visceral ao que não me era familiar. Ou se havia razões de ser. Achei que os escritos “teóricos” deram-me bastante razão. Dos jogos só odiei um: o Sorcerer. Nos três livros, o rácio jogo/rant era muito pobre: o homem estava tão ocupado a dizer o que o jogo não era e que os jogos que eram como ele não era eram uma merda, que pouco disse do que o jogo era e fazia. Pessoalmente, pareceu-me que o autor fez um RPG usando uma versão simplificada das regras de magia do jogo clássico da Chaosium, Elric/Stormbringer, que se baseava na invocação de demónios e convencê-los a realizar as vontades do feiticeiro. Outros achei que tinham conceitos interessantes, outros menos. Daí ter percebido que os jogos tinham de ser vistos independentemente da origem que tenham e das opiniões que o autor tenha fora do jogo. As minhas opiniões sobre se são RPGs ou não ou se são inovadores ou não estão expostas noutro lado.
Uma coisa me prometi eu: nunca hei-de jogar um desses jogos numa mesa em que eu seja o único não-sectário. Tenho medo. Terei de os experimentar num grupo em que pelo menos 50% dos jogadores não sejam aficionados confirmados.
Ok, tentei dar uma ideia desapaixonada das minhas razões. E até das menos-razões, do conteúdo mais emocional. Provavelmente terei dito coisas a mais e esquecido outras, mas acho que, globalmente, tenho aqui um mapa dos meus motivos. Se calhar na realidade algumas razões tiveram mais impacto numa altura, outras noutra. Há, reconhecidamente, uma componente de ódio irracional fortíssimo que não consigo explicar e que, se calhar, não sei lidar bem com ele. Admito que sim. Há quem me dê razão, há quem não. Muito bem, é assim que é o mundo, e não deixo de respeitar e até gostar de quem não concorda comigo.
Mas deixo uma frase para reflexão: eu acredito em respeitar os outros, mas nunca em respeitar as ideias deles.
Zé